É João Abel Manta quem nos ajuda a fechar este folhetim de folhetins, que propositadamente fez um sobrevoo exaustivo sobre as várias leituras (e tantas ficaram por fazer) que a lusitana língua tem para nos dar do lado de cá do Atlântico. É Fernando Pessoa, qual Hamlet, a fazer a pergunta enigmática que esta série encerra. E devemos alguns esclarecimentos.
Antes do mais, porquê este título esotérico de “Pedras no meio do caminho”?
De facto, é Carlos Drummond de Andrade o inspirador desta fórmula, pelo poema que bem conhecemos.
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Parece estranho, mas não é. Os nossos leitores sabem que, ao longo do tempo – a memória e o património cultural representam-se metaforicamente, como quis Rabelais, entre pedras mortas e pedras vivas – e as pedras vivas são as pessoas. Não há cultura sem memória, sem interrogação, sem enigma. Monumentos, habitações, documentos, crónicas, idiomas, tradições, natureza, paisagem, técnicas, instrumentos, comunicação, criatividade. E foi assim que ao longo das semanas lidámos com fantasmas, propositadamente, com os seus caprichosos espíritos que, em vez de terem desaparecido, se mantêm presentes e vivos de diversas maneiras – pelo que escreveram e disseram, pelo que viveram e legaram. E do princípio ao fim lidámos com Carlos Fradique Mendes, heterónimo exclusivo de uma geração, símbolo heterogéneo, surgido na absurda história da Estrada de Sintra, filho de Eça e Ramalho, espécie de pirata cultor de um pensamento mefistofélico; depois Antero e Jaime Batalha Reis inventam-no como um poeta singular e marginal – e, por fim, Eça de Queiroz, liberto do pendor romântico da Ramalhal figura, deu-lhe nervo e espírito, com autonomia, como verdadeiro símbolo de uma geração maior. Não por acaso, demos dois exemplos de folhetins romanescos. As “Viagens” de Garrett renovaram a literatura (como fez Almada Negreiros em “Nome Guerra”) e o “Mistério da Estrada de Sintra”, sem ser obra genial, é o anúncio em parte (a de Eça) do naturalismo e depois do simbolismo. E voltamos a Fradique, que é muito mais do que filho de uma escola, representa a transição que nos conduz de Afonso e Carlos da Maia até Jacinto e Gonçalo Mendes Ramires – da Regeneração à Renascença Portuguesa, de 1870 a 1915 e ao “Orpheu”. Tivemos um Romantismo muito longo, libertado com Antero, Cesário e Pessanha de uma escola decaída de elogio mútuo, enterrada no Bom Senso e Bom Gosto e nas Conferências do Largo da Abegoaria.
Como podem compreender, o folhetim é caricatural e trágico. Poderíamos ter ido mais adiante. Chegámos aos Barbelas e aí pudemos ver quem somos na dimensão plural da história, mas poderíamos ter falado ainda de Agustina e da sua “Sibila”, de Quina e Germa e do mesmo ano emblemático: “Há uma data na varanda desta sala que lembra a época em que a casa se construiu. Um incêndio por alturas de 1870, reduziu a ruínas toda a estrutura primitiva”. Que data estranha esta, recorrente, tantas vezes encontrada.
Reunidos numa sala ampla, Jaime Ramos interroga comigo os suspeitos e protagonistas: todos fantasmas, Fradique, Justino Antunes, Conselheiro Torres, Coronel Segismundo, Conselheiro Acácio, Luísa do “Primo Basílio”, o inefável Pacheco, Zé Povinho, Joãozinho das Perdizes, o Bispo de Viseu, Calisto Elói de Barbuda, Corto Maltese, Sandokan, Gastão de Sequeira, Fernão Mendes Pinto, António José da Silva, o Vaqueiro do Auto da Visitação, Frei Dinis, Carlos e Joaninha, o conde de Abranhos, Camilo Castelo Branco, Antunes e Judite, Jaime Ramos, Luísa, a condessa de W., Garrett (ele mesmo) com Duarte Guedes, Amália, Josefina e José Félix, D. Raymundo de Barbela, o cavaleiro e a bela Madeleine, Pessoa como Hamlet, e (à ultima da hora) Quina e Germa… uma algazarra.
Duas horas de interrogatório. Jaime Ramos é sistemático. E o veredicto é duro. «Todos, mas todos sem exceção, são culpados”. A condessa de W., ainda pretendeu assumir, ela só, todas as culpas. Mas Ramos pô-la à prova com o detetor de mentiras. A culpa dela era a mesma de todos os outros… um pequeno golpe para cada um. O que estava em causa era a culpa para manter, pura e impura, a lusitana língua e, como no “Crime do Expresso do Oriente”, a culpa era de todos, todos, próximos ou distantes!
Houve broaá, e pronto, a cortina desceu apressadamente, para paz de todos. Um compasso de espera e houve palmas…
Agostinho de Morais