Que disseram Ramalho e Eça sobre o “Mistério da Estrada de Sintra”?
«O que pensamos hoje (1884) do romance que escrevemos há catorze anos?… Pensamos simplesmente – louvores a Deus! – que ele é execrável; e nenhum de nós, quer como romancista, quer como crítico, deseja, nem ao seu pior inimigo, um livro igual. Porque nele há um pouco de tudo quanto um romancista lhe não deveria pôr e quase tudo quanto um crítico lhe deveria tirar».
E lembravam a seguinte história: «Conta-se que Murat, sendo rei de Nápoles, mandara pendurar na sala do trono o seu antigo chicote de postilhão, e muitas vezes, apontando para o cetro, mostrava depois o açoite, gostando de repetir: Comecei por ali. Esta gloriosa história confirma o nosso parecer, sem com isto querermos dizer que ela se aplique às nossas pessoas. Como trono temos ainda a mesma velha cadeira em que escrevíamos há quinze anos; não temos dossel que nos cubra; e as nossas cabeças, que embranquecem, não se cingem por enquanto de coroa alguma, nem de louros, nem de Nápoles».
Percebemos a necessidade de se demarcarem de um entretenimento. A verdade, porém, é que o folhetim se procurava demarcar do receituário em vigor. Leia-se o termo do enredo. Luísa despede-se do mundo. «Entregando-lhe em seguida o capuz e o manto de casimira em que fora envolvida: — Adeus, meu primo — disse-lhe ela deixando-se beijar na testa — adeus! Peça a Deus que me perdoe, e aos vivos que me esqueçam. Aos primeiros passos que ela deu para lá da porta, esta fechou-se do mesmo modo por que havia sido aberta, sem que ninguém mais fosse visto, tendo mostrado um buraco lôbrego, negro e profundo como a goela de um abismo, e a amante de Rytmel entrou no claustro. Os ferrolhos interiores rangeram sucessivamente nos anéis, expedindo uns sons entrecortados, semelhantes a soluços arrancados de uma garganta de ferro». Depois, o mascarado alto passou parte dessa noite na vila, esperando a mala-posta. E ouviram-se os sinos das carmelitas pedindo caridade. E o conde de W… recebeu em Bruxelas a carta de sua mulher: «Destituo-me voluntariamente da minha posição na sociedade. De todos os direitos que porventura pudesse ter, um só peço que não seja contestado: o direito de acabar. Suplico-lhe que me permita desaparecer, e que acredite na sinceridade da minha gratidão eterna».
E é aqui que este folhetim dá uma volta de 360 graus. Parece estranha uma tão grande guinada. É que, como bem se recordam, tudo começou com uma estranha descoberta: a de que Carlos Fradique Mendes está vivo. Quando muitos pensavam que ele estava riscado do mundo dos vivos, foi descoberto para sua grande irritação a almoçar num pacato restaurante na proximidade do Passeio Público. E eis que o encontramos de novo. Agora, já sabemos que Luísa se encerrou no claustro de um mosteiro, preferindo desvanecer-se a seguir o caminho de Emma ou de Anna. Fradique Mendes, esse, partiu para uma quinta dos subúrbios de Lisboa para escrever, «debaixo das árvores e de bruços na relva», um livro em colaboração, com o qual prometeu o extermínio a pontapés de todos os trambolhos a que as escolas literárias dominantes têm querido sujeitar as invioláveis liberdades do espírito. «Presenciar as profundas comoções romanescas da vida é como ter assistido a um grande naufrágio: sente-se então a necessidade consoladora das coisas pacíficas: então mais que nunca se reconhece que o ser humano só pode ter a felicidade no dever cumprido».
E fica apenas por saber qual a pergunta mistério deste folhetim?
Agostinho de Morais