Prémio Nobel da Literatura de língua portuguesa, José Saramago (1922-2010) tornou-se uma referência essencial dos estudiosos e cultores das literaturas da nossa língua comum, encontrando na sua obra razões fortes para desejarem conhecer melhor Portugal.
«Memorial do Convento» foi publicado em 1982 e constituiu um sucesso literário, pelo tratamento do tema, pela vivacidade e ritmo da escrita, pelo domínio da língua portuguesa. É o retrato do rei D. João V e da sua magnificência, num tempo dominado pela riqueza do ouro do Brasil no reino, numa rica convergência de elementos contraditórios, bem evidenciados na complexidade das personagens escolhidas. Para Saramago a personagem fundamental, em torno da qual tudo se desenvolve, é o magnífico Convento de Mafra (com órgãos únicos no mundo, carrilhões insuperáveis, livraria extraordinária, património invejável). «Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento de Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido»…
A riqueza do ouro, transportado em arcas, contrasta com os vários operários anónimos que contribuem para a magnífica construção. E entre eles, está Baltasar Mateus, que tem a alcunha de “Sete-Sóis” porque vive atraído pela luz, tendo perdido a mão esquerda na guerra da sucessão de Espanha. Baltazar ama Blimunda Jesus, chamada de “Sete-Luas”, porque consegue ver no escuro e por dentro das pessoas. Esta, ao ter esta capacidade, consegue recolher as vontades de cada um, como nuvens abertas ou nuvens fechadas. Os dois conhecem um clérigo visionário, o Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, “o voador”, marcado pelo espírito científico e pela heterodoxia religiosa, que inicia a construção de um aparelho voador, a Passarola, com o objetivo de subir em direção ao Sol, em lugares a que só Cristo e os santos tinham chegado. A concretização deste sonho torna-se uma obsessão e leva-o a viajar primeiro para a Holanda, em busca do segredo, que permitiria a Passarola voar, e depois para Coimbra, onde se doutorou. É ele, aliás, quem realiza o batismo e a comunhão de Sete-Luas e Sete-Sóis: «o padre virou-se para ela, sorriu, olhou um e olhou outro, e declarou: Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, e assim, Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem batizada estava, que o batismo foi de padre, não alcunha de qualquer um». Após um dos voos da Passarola, Bartolomeu foge para Espanha, perseguido pela Inquisição, enquanto Blimunda e Baltasar tratam de esconder o aparelho entre os arbustos da serra e de fazer a sua manutenção. Não podemos esquecer a figura do músico Domenico Scarlatti que, a convite do Padre Bartolomeu, participa no projeto da Passarola, como testemunha silenciosa. Então une-se a ciência e a arte, como reveladoras de um espírito de inovação e de abertura ao progresso. Scarlatti instala secretamente o seu cravo na Quinta do Duque de Aveiro, onde toca a sua música e inspira a construção da Passarola, símbolo dos novos tempos das luzes. E quando Blimunda fica com a estranha doença do esgotamento na recolha das vontades, a arte do músico provoca uma cura completa. Um dia, Baltasar ficou preso à passarola, enquanto fazia a sua manutenção, e os cabos que a impediam de se elevar nos céus rebentaram, tendo sido levado pelos ares. A aeronave então despenha-se e Baltasar é capturado pela Inquisição, acusado de bruxaria. Blimunda recolhe, no epílogo do romance, a vontade de Baltasar, enquanto este morre, condenado à fogueira. E quem é Baltazar? Um homem simples, rudimentar, resignado, terno e fiel, que ama Blimunda, a qual compensa a mão que lhe falta, mas que lhe permite compreender para além do que vê, aceitando o que a vida lhe oferece. E no final é Blimunda quem sobrevive, ela que aprendera tudo o que sabia ainda no seio de sua mãe, onde estivera de olhos abertos.
Se o Memorial é referência essencial, importa lembrar a sombra de Fernando Pessoa e de Ricardo Reis, médico e latinista, nascido em 19 de setembro de 1887. É um homem solitário, que gosta de almoçar em pequenos restaurantes. E pede aos empregados que ponham o lugar à sua frente para um companheiro imaginário. E imagina histórias sobre hóspedes que frequentam o hotel. Cria familiaridade com o gerente, Senhor Salvador, e com Pimenta que lhe carrega as malas, mas também com Lídia, a empregada que lhe limpa o quarto, onde lhe serve o pequeno-almoço. Mas não deixa de chamar a atenção da polícia política, que se interroga sobre a verdadeira razão da sua vinda do Brasil. As notícias que lê todos os dias nos jornais desenham uma pátria pacífica, um oásis num mundo agitado. É “onde o mar acaba e a terra principia, chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas do barro, há cheia nas lezírias” … Reis chega no dia 29 de dezembro de 1935. Os periódicos, em geral, pintam um retrato idílico do país em que Salazar faz o seu caminho. No fim do interrogatório, a que não escapa, na PVDE sente à saída da António Maria Cardoso um fedor a cebola que exalava Victor, o inevitável informador. E o certo é que noutros momentos esse cheiro característico rondava por perto. Ricardo Reis encontra-se com País que deixara anos antes por fidelidade às suas ideias monárquicas… Mas, com Fernando Pessoa, com a revolta dos marinheiros de setembro de 1936 em fundo, vai desvanecer-se no alto de Santa Catarina sem que alguém desse por isso… “O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui onde o mar se acabou e a terra espera”…
GOM