A cultura europeia é pluralista, dinâmica e renovadora. Longe de uma identidade harmonizadora ou de uma lógica de uniformidade, o “património comum” leva-nos, na lógica da herança e da tradição, ao bem comum europeu, como ação inovadora como fator de coesão, de harmonia e de emancipação. A identidade europeia é construída por várias identidades, é plural, é complexa, é multifacetada. Não há, pois, uma “comunidade de destino”, mas uma comunidade plural de destinos e valores. Falar de identidade europeia é, assim, referirmo-nos à complexidade, a uma realidade não confundível com um bloco monolítico, diferente das nações e dos povos que a constituem. Daí que a legitimidade europeia seja de Estados e povos, e que a realidade “constitucional” da Europa não seja um sucedâneo ou um substituto das “constituições nacionais”. Continua a ser tempo de seguir uma via de “euro-realismo”, já que andar para trás “seria regressar a formas de centralismo, autoritarismo e subdesenvolvimento paroquial”. No fundo, sem uma sábia ligação entre as legitimidades dos Estados e dos cidadãos, arriscar-nos-emos a criar uma realidade efémera, artificial e reversível sem ligação efetiva ao mundo da vida. Só uma forte vontade comum ajudará a superarmos o fosso entre as instituições europeias e as pessoas.
Continente de contrastes unido pelo conteúdo, acessível, recortado, temperado, em que a variedade é a regra, a Europa não é uma Babel nem uma terra de ninguém. Terra de conflitos e de contradições, de guerras civis, de competição e de combate, alberga uma constante procura de equilíbrio e de síntese através de várias influências, etapas e polos. “É o dualismo entre fé e lei que, desde o início, torna possível o crescimento da liberdade e das liberdades – porventura o maior anelo e fator de dinamismo da história europeia no seu conjunto. Braudel considera que ‘liberdade’ – não apenas a individual mas também a das cidades, dos grupos e das nações – é mesmo a palavra-chave dessa história” – como lembra Francisco Lucas Pires. Assim, é possível ler “uma história através de várias histórias”, desde as raízes greco-romanas, das invasões bárbaras e da conversão cristã da Europa, para chegar à “coroação poética” da “Divina Comédia” e a uma “cultura comum europeia”, segundo a expressão feliz de T.S. Eliot, continuando essa rota na crise da República Cristã e na vida da Europa dos tempos modernos. Seguindo Paul Valéry, é fundamental reter a emergência de uma grande síntese na identidade originária da Europa enquanto “legado greco-romano mais cristianismo”. A história moderna abre, assim, campo às diferenças e a uma conflitualidade decorrente da competição gerada no Renascimento e continuada no iluminismo, no liberalismo, na revolução social do industrialismo e na mundialização.
À tentativa de criar condições para a emancipação nacional com equilíbrio e tolerância entre os Estados, sucede a autarcia e o fechamento. E em 1914, depois de a “Primavera dos Povos” (1848) ter-se inclinado para os nacionalismos protecionistas, a Europa como possibilidade de ação em comum deixou de existir pelas suas contradições nacionais. E foi a devastação da guerra e a necessidade de reconstrução que fez regressar à ordem dia um programa europeu, no contexto de uma paz ameaçada e segundo o modelo de Jean Monnet de “integração funcional”. Tratava-se de garantir a partilha de soberanias e a salvaguarda de um projeto assente nos valores comuns da liberdade (cidadania europeia), da democracia (codecisão e esboço de democracia parlamentar nas relações entre a Comissão e o Parlamento), do desenvolvimento (moeda única e coesão), e da segurança (política externa e de segurança comum e cooperação policial e judicial), fatores de efetiva complementaridade. Eis a base do método comunitário e da subsidiariedade e a necessidade de seguir um caminho de construção gradual das instituições supranacionais e de respeito escrupuloso pela iniciativa cívica e pelo que está mais próximo dos cidadãos, que prevaleça sobre o que está mais distante das pessoas (os Estados e a democracia supranacional). A ideia de “Europa connosco” não corresponde nem a uma subalternização, nem a um fechamento, mas à abertura de horizontes, a uma geometria variável e à participação numa globalização baseada na paz e na cooperação.
Agostinho de Morais