Até ao início do século XIX não encontramos referências musicais ou literárias ao termo Fado, como género artístico. Até então apenas se atribuía à palavra o sentido de destino (do latim fatum). Só nessa aceção encontramos a palavra na poesia, desde Camões a Bocage – sem falar da antiga tradição lírica dos trovadores.
Nas fontes documentais portuguesas, é apenas por volta de 1830 que nos surgem as primeiras referências ao termo com significado musical. O Dicionário de António Morais e Silva apenas refere o Fado como género poético-musical a partir de 1878. Quando no início do século XIX o Fado surge referido por diversos autores é-o sobretudo relativamente ao Brasil, como uma dança cantada, executada por pares, com contacto físico e movimentos regulares ligados ao ritmo. A vinda da Corte do Brasil traz assim esta prática. Inicialmente este Fado era praticado sobretudo por negros e mestiços como dança de terreiro, de influência africana… é descrita como voluptuosa, imoral e indecorosa…
Desde a década de 1830, o Fado é referido como canção e dança – ligado à boémia, às tabernas, aos prostíbulos e à tauromaquia. Há, pois, uma matriz original afro-brasileira do Fado. Figuras célebres da Alta Nobreza, em particular as mais ligadas à atividade tauromáquica, como o marquês de Castelo Melhor ou o Conde de Vimioso, promovem nos seus palácios apresentações de Fado. Este último titular ficará célebre pela ligação amorosa, por volta de 1840, a uma prostituta lisboeta, celebrada fadista, nascida na Madragoa, na hoje Rua Vicente Borga, que viveu na Mouraria – Maria Severa Onofriana, que nas décadas subsequentes à sua morte, ocorrida em 1846, com cerca de 26 anos de idade, se tornaria alvo de uma aura mítica, cada vez mais fantasiosa, transformando-se no primeiro ícone simbólico da afirmação do género fadista.
A ligação entre estes diferentes elementos irá dar lugar à afirmação do Fado assente em elementos complexos e diversos – a dança musicada, documentada em representações do Lundum nas tascas dos bairros típicos (Madragoa, Alfama e Mouraria), as festas ligadas aos touros e às touradas, o acesso às salas dos palácios dos melhores “cantadores de fado”, o uso da guitarra portuguesa e da guitarra clássica. São contraditórias as reações ao Fado, uns recordam sobretudo a origem popular de má fama enquanto, outros começam a fazer ligação às tradições líricas aristocráticas. Em Coimbra, Hilário lançará outra tradição.
O século XX mudaria tudo. As razões que levaram Alfredo Pimenta a combater os efeitos deletérios do Fado vão desvanecer-se e se há alguém que contribuiu para essa mudança radical foi quem acompanhou Amália Rodrigues, a partir dos anos quarenta e cinquenta. E além de Amália temos grandes poetas que compreenderam a importância de ligar a sua escrita ao Fado – Pedro Homem de Melo, David Mourão-Ferreira, Manuel Alegre e, com alguma surpresa, um poeta de origens surrealistas, como Alexandre O’Neill. Mas será Alain Oulman, da família dos editores Calmain-Levy, a contribuir para um enriquecimento cultural e artístico do Fado. Assim, Amália vai dar ao Fado um cunho novo, ligado ao fundo lírico português – as suas raízes familiares são, aliás, beirãs, e esse facto dá versatilidade ao Fado, para além dos limites tradicionais.
E olhemos a galeria dos grandes da renovação do Fado: além de Amália, Alfredo Marceneiro, Carlos Ramos, Hermínia Silva, Maria Teresa de Noronha, Vicente da Câmara, Carlos do Carmo, mas ainda Argentina Santos, Maria da Fé, Rodrigo, Camané e Mariza. Não podemos ser exaustivos. E quando ouvimos Cristina Branco (tornada símbolo da República por Júlio Pomar), Carminho, Kátia Guerreiro ou Aldina Duarte compreendemos que houve uma grande evolução, na qualidade e na exigência. E no domínio instrumental, Carlos Paredes é uma referência que em bom rigor ultrapassa as fronteiras estritas do Fado. E não podemos compreender a riqueza do género sem a qualidade de grandes instrumentistas, como Raul Nery, Júlio Gomes, Fontes Rocha ou Joel Pina – e sem a afirmação autónoma de músicos como Mestre António Chainho, Ricardo Rocha ou Mário Pacheco.
Ao escrever “As sílabas de Amália”, Manuel Alegre recorda o talento da grande artista, ao compreender a exigência da mudança. O Fado ganha com Amália uma outra dimensão. Ela confessará que em Paris nos concertos do Olympia se cantasse apenas o Fado tradicional não motivaria o público. Cedência à popularidade? Não. Preocupação em levar mais longe o fundo lírico da nossa cultura. Essa a importância de dar uma nova vida a Camões. Daí a homenagem a Alain Oulman que teve o grande instinto para o que da poesia era ao mesmo tempo culto e popular. E o tributo a Amália deve-se ao facto de ter dado uma outra dimensão ao Fado, tornando-o mais nacional e mais universal. E Manuel Alegre concorda com Hernâni Cidade, para quem Camões foi o mais fadista dos poetas portugueses… Leonel Moura associa, assim, e muito bem Amália à cultura portuguesa.
GOM