“O Labirinto da Saudade – Psicanálise Mítica do Destino Português” de Eduardo Lourenço (1978) é uma das obras fundamentais do século XX sobre a nossa identidade. O ensaio principal foi escrito para a revista “Raiz e Utopia” (5-6, 1978).
O ensaísta é um cultor de paradoxos, ciente de que a cultura se enriquece pela capacidade de ver o mundo do avesso e de olhar para além das aparências. «É a vida mesma que nos biografa – por isso é a nossa vida – e escrevendo-se em nós nos autobiografa sem que a ninguém, salvo essa vertiginosa musa, possamos imputar tão extraordinária façanha». Com um dom de usar as palavras para melhor as adequar ao mundo da vida, o escritor não esconde que a essência do género que cultiva, tem a ver com a confissão na primeira pessoa do singular. «Nisso quem está a menos, somos nós, e a vida tão excessivamente a mais que só a conhecemos por nossa nos intervalos em que a temos como se de outro fosse. Só os outros nos tiram retratos e só a coleção aleatória destas vistas ocasionais dos outros sobre nós ocasionalmente arquivadas, se isso valesse a pena, para termos mais tarde e acabada a vida que não nos tem, seria então um “autorretrato”».
Um grafólogo identificou na escrita do ensaísta «uma excessiva necessidade de outros», e o próprio comparou-se a Judas que precisava desesperadamente de Jesus Cristo. E aqui se sente o heterodoxo, incapaz de se deixar ficar ora na leitura racional e positiva dos acontecimentos, ora na tentação mítica ou ilusória das explicações das pessoas e do mundo. Em S. Pedro de Rio Seco está a origem dessa atitude de dúvida e de espanto. «Tenho consciência de que tudo me é pretexto para não falar de mim. Ou seja: para falar incessantemente de mim. É por isso que a minha escrita é lírica e passional» (JL, 6.12.86).
A saída da aldeia “foi a saída para o mundo exterior, a saída sem regresso». E a Guarda, primeiro destino, tornou-se como se fora Nova Iorque, o sinónimo do mundo – esse mundo que Thomas Mann representou na «Montanha Mágica» e que encontramos em Vergílio Ferreira. E essa adolescência vivida com naturalidade pôde assemelhar-se ao sublime. Afinal, «a interioridade é também um mito porque estávamos sempre no exterior de nós próprios» («25 Portugueses», 1999). Depois, vieram Lisboa e o Colégio Militar. Lisboa era o sítio ideal para acreditar que as caravelas continuavam a existir. E Eduardo Lourenço fez dessa experiência singular um modo de olhar a vida. Como em tudo, tira a boa lição, define distâncias, e avança para Coimbra cheio das ilusões dos dezassete anos. Na biblioteca, encontra Nietzsche, continua com Kierkegaard, entusiasma-se com Hegel e estuda Husserl. Joaquim de Carvalho e Sílvio Lima tornam-se referências que o marcam pelas ideias, pela atitude, pelo sentido crítico. Eugénio de Andrade encontra-o e lembra-o com Carlos de Oliveira («foi o Carlos que me apresentou o Eduardo»).
É o tempo do neorrealismo, que Eduardo Lourenço procura compreender, ressalvando a distância crítica. Há, no entanto, manifesta ambiguidade em quem se preocupa com a descoberta dos outros. O episódio da passagem da «Vértice» para o grupo neorrealista é ilustrativa da candura, e da confiança pessoal genuína em Carlos de Oliveira e Rui Feijó. E, nessa demarcação de território, «Heterodoxia» surge como algo de natural. Vitorino Nemésio dirá tratar-se de um livro «juvenil e ardente, concatenado com saber e amor da exatidão, e escrito com um nervo e uma elegância que farão inveja a muitos prosadores brevetados» (Diário Popular, 28.6.50). As reações foram contraditórias – houve quem lesse com entusiasmo e quem julgasse tratar-se de uma traição (mesmo sem profissão de fé anterior)… O curso histórico confirma a clarividência.
Em 1953 parte, mas recusa a condição de exilado. É apenas emigrado. «Como é que um homem nascido em S. Pedro de Rio Seco pode ser outra coisa que não português?» (JL, 6.12.86). Não aceita ser estrangeirado – «Não, não aceito. Fico furioso. Fico desesperado» (Ibidem). De facto, o seu método é o de olhar de dentro, mesmo estando de fora. «Exílio verdadeiro, o autor destas reflexões só o conheceu no interior do seu país». Paris, Hamburgo, Heidelberg, Montpellier, Salvador da Bahia. «Gostei muito de estar na Alemanha. Sobretudo em Heidelberg. Mais tarde arrependi-me de não ter aí ficado…» (Expresso, 23.9.95). Depois, Grenoble, Nice, Vence. Mas continua atentíssimo ao que se passa em Portugal.
São fundamentais os seus textos em «O Tempo e o Modo». Sentem-se, sobretudo após 1958, 1961 e 1968, os sinais da transição, lenta e com sintomas contraditórios. «O fascismo existiu e com uma perfeição quase absoluta. Mas não existiu nunca como a maioria da oposição democrática o pensou antes do 25 de Abril, e a ela continua a referir-se uma parte da classe política triunfante, simplificando-o com a espécie de violência infantil que se reserva aos papões que deixaram de meter medo». Eduardo Lourenço procura compreender Portugal quando a liberdade chega com o fim do império. Escreve não para recuperar o país, que não perdeu, mas para o «pensar» com a mesma paixão e sangue-frio intelectual com que pensava quando «teve a felicidade melancólica de viver nele como prisioneiro de alma».
Em «O Labirinto da Saudade», conclui que a imagem ideal de nós mesmos era desadequada da realidade, sendo chegada «a hora de fugir para dentro de casa, de nos barricarmos dentro dela, de construir com constância o país habitável de todos, sem esperar de um eterno lá-fora ou lá-longe a solução que, como no apólogo célebre, está enterrada no nosso exíguo quintal. Não estamos sós no mundo, nunca o estivemos». A conversão cultural necessária passa por um olhar crítico sobre o que somos e fazemos. Portugal, Europa, mundo obrigam a repensar o destino como vontade, seguindo a lição perene de Antero e dos seus… O ensaísta tem no seu código genético a marca fundamental de uma síntese fantástica que liga o grito de Antero e dos jovens de Coimbra e do Casino Lisbonense ao impulso futurista de Pessoa e do “Orpheu”, menos no imediato, mais no largo prazo, de quem procurou ligar a razão e o mito, o idealismo e o sentimento trágico da vida. Pensa Portugal como vontade e como comunidade plural de destinos e valores, pondo em diálogo os mitos e a razão e procurando afastar a maldição do atraso.
O enigma português, em suma, não pode ser respondido ou encontrado através de qualquer simplificação – ora idealista, ora sentimentalista, ora materialista. Sá de Miranda e Herculano representam que mais vale quebrar que torcer. Camões a força criadora. Garrett a imaginação lírica. Fernão Mendes Pinto simboliza a fértil aventura ao encontro do mundo. O Padre António Vieira interroga a Deus e invetiva-o. Camilo e Eça retratam as diversas faces contraditórias da pátria. E a utopia torna-se horizonte de crítica e de exigência, e nunca fuga à realidade.
Artífice de uma heterodoxia fecunda, Eduardo Lourenço é hoje uma das consciências culturais, morais e cívicas da Europa contemporânea, ao lado de Edgar Morin, de Claudio Magris ou de Jürgen Habermas. Só a heterodoxia permite entender o nosso melting-pot, indo ao encontro do cadinho da miscigenação, ligando a razão e a emoção, percebendo a alternância cíclica do otimismo e do pessimismo. É a «maravilhosa imperfeição» como marca de complexidade e diversidade.
GOM