Como nos aconselhou Garrett, continuamos a deambular ora pelas terras ora pelo nosso quarto, como Xavier de Maistre, porque “o prazer que se encontra em viajar dentro do seu quarto está ao abrigo da inveja inquieta dos homens e não depende da fortuna”… E voltamos a encontrar Teixeira de Pascoaes, não tanto o da “Arte de Ser Português”, mas o inesgotável poeta que soube unir, como salientou Unamuno, a lírica e a tragédia. Nascido a 2 de novembro de 1877 na freguesia de São Gonçalo de Amarante, morreu a 14 de dezembro de 1952 no Solar de Pascoaes em Gatão. Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos era filho de Carlota Guedes Monteiro e de João Pereira Teixeira de Vasconcelos, deputado às Cortes por Amarante e agricultor de boa fazenda e inesgotável conversador, conhecedor profundo das raízes culturais da língua e do povo. O filho era “homem cabisbaixo, sisudo, com uns olhos tristes e espantados”, que fez o curso oficial no Liceu de Amarante, onde teve os seus primeiros versos publicados no “Flor do Tâmega”, partindo em 1896 com 18 anos, para Coimbra, para cursar Direito. Ainda nas margens do Tâmega, com 17 anos, publicou no Porto “Embriões” (1895). E em 1896, já a estudar em Coimbra, editou “Bello”, “Sempre” e “Terra Proibida”, onde Jacinto do Prado Coelho já nota “a imaginação do abstrato, o sentimento religioso das coisas, que tornariam inconfundível a sua poesia”.
Convive com Augusto Gil, Afonso Lopes Vieira, Fausto Guedes Teixeira e João Lúcio, mas não vive a boémia coimbrã, já que, segundo Jacinto do Prado Coelho, «o verdadeiro amor de Pascoaes dirigia-se à natureza, ao silêncio, ao mistério, aos fantasmas. O mundo fantástico era o seu mundo.” Em Amarante, começa a exercer advocacia. Em 1906, abre escritório na Cidade do Porto, onde conhece Leonardo Coimbra, Raul Brandão, Jaime Cortesão e António Patrício. Em 1911, é nomeado juiz substituto em Amarante, cargo que abandonará, refugiando-se na Casa de Pascoaes, buscando uma vida solitária e sem sobressaltos, em sintonia com a Natureza, escolhendo “só ser poeta”. Depois de 5 de outubro de 1910, com a proclamação da República, participou ativamente na ideia de ressuscitar a Pátria, arrancando-a do túmulo da obscuridade física e moral “em que os corpos definharam e as almas amorteceram”. Assim, Pascoaes dirigirá a revista “A Águia,” entre 1912 e 1916, à frente de um grupo de intelectuais portuenses, sob a bandeira da “Renascença Portuguesa”, no qual se distinguem António Carneiro, Leonardo Coimbra, Jaime Cortesão, Álvaro Pinto e Mário Beirão. A ideia de saudosismo, de uma saudade feita de lembrança e desejo, havia sido agravada pelo Ultimato inglês de 11 de janeiro de 1890. De algum modo, Pascoaes é um herdeiro da Geração de 70, procurando dar ao progresso geral da humanidade e da natureza uma orientação natural e positiva através da História, subjacente aos “vencidos da vida”, elevando o culto da saudade e da sua essência espiritual, que considera arreigado na literatura lusitana, desde os trovadores, de D. Duarte ou de Bernardim.
O saudosismo não é, porém, marca única de Pascoaes. Veja-se, por isso, a relação do poeta de Amarante com os seus contemporâneos, segundo Onésimo Teotónio de Almeida. «Fernando Pessoa viu em Pascoaes uma “gravidez do Divino” e adotou várias facetas da sua visão ao elaborar o projeto da Mensagem». E António Sérgio distinguiu em Pascoaes sempre o poeta das ideias mítico-filosóficas. Tratando-o sempre com dignidade. Quase quarenta anos após a polémica do saudosismo, a Academia de Coimbra homenageou Teixeira de Pascoaes através de um volume reunindo poemas e estudos sobre o autor de Marânus. O organizador do volume, Joaquim de Montezuma de Carvalho, convidou António Sérgio a participar e este acedeu prontamente, para não faltar numa homenagem “tão justa”. Se tinha levantado reparos ao nacionalismo estético-psicológico-político, criou-se a lenda de Sérgio ser adverso “a um eloquentíssimo poeta que sempre admirei e amei”.
A intelectualidade portuguesa rodeava Sérgio, e nos seus ensinamentos bebia inspiração para a almejada transformação da mentalidade do país. Se não custava a Sérgio ser magnânimo, não era obrigatório que o fosse. As verdadeiras razões da sua participação na homenagem são-nos, todavia, fornecidas pelo próprio António Sérgio em curtos mas lapidares parágrafos. Sérgio considera que o maior defeito do nacionalismo estético de Pascoaes é ser muito injusto para o próprio poeta, por esbater nele o que há de mais “valioso e intrínseco”, algo mesmo excecional na poesia portuguesa, profundamente marcada pela melancolia. Em contracorrente, Pascoaes é “o mais romântico de todos os escritores portugueses na modalidade mais nórdica que o alto romantismo assumiu”. Além disso, a sua poesia é “um protesto contra o Deus demiúrgico, contra a Divindade criadora do Testamento Antigo”. “As dores de quem sente, Pascoaes transfere-as por imaginação para o conjunto das coisas que espontaneamente humaniza”, o que é também invulgar na nossa lírica. “Em tal grau se dá nele a transmigração para as coisas, que nos poemas mais íntimos, de mais autêntico lirismo, ele se esquece dos homens como seres individuais e distintos, como mais próximos do poeta, reduzindo-os a elementos do grande ambiente físico, que é a personagem capital da sua obra poética; e de aí o aparecimento deste verso estranho, à primeira vista inumano: “as pessoas são nada, e as coisas tudo”. O supostamente positivista Sérgio “revela a sua idiososincrásica luminosidade, separando de modo clarividente o que se analisa à luz da razão, do pertencente a esferas íntimas do espírito humano, sempre conservando a serenidade e o discernimento necessários para reconhecer a diferença” – como salienta Onésimo T. Almeida (A Saudade e os Saudosistas – Uma Revisitação da Polémica entre António Sérgio e Teixeira de Pascoaes, Via Atlântica, n.º 7, outubro 2004).
GOM