Esta célebre fotografia foi tirada no Palácio de Cristal na Cidade do Porto e reúne cinco amigos da geração de 1870: Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro. A imagem está ligada a um mítico almoço e à compra de um leque para oferecer a D. Emília, noiva de Eça, autografado com uma pena de cozinha, entre a pera e o queijo: “quem muito ladra, pouco aprende” (Antero), “escritor que ladra não dorme” (Oliveira Martins); “dentada de crítico, cura-se como pelo do mesmo crítico” (Ramalho), “cão lírico ladra à lua; cão filósofo abocanha o melhor osso” (Eça), “cão de letras, cachorro!” (Junqueiro). E a matilha escreveu um “envoi”: “São cinco cães sentinelas / De bronze e papel almaço; / De bronze para as canelas, / De papel para o regaço”… Esta é uma das últimas expressões felizes do tempo em que Antero pôde ser feliz na costa de Vila do Conde.
Eça de Queiroz confessa o seu “temperamento conspirador”, a sua costela socialista, a sua admiração pela Comuna, mas em “As Farpas” afirma: “Detestamos o facho tradicional, o sentimental rebate a sinos; e parece-nos que um tiro é um argumento que penetra o adversário – um tanto de mais!”… No fundo, defendia uma revolução pacífica, “preparada na região das ideias e da ciência”, influenciada por uma “opinião esclarecida”, numa palavra, uma “revolução pelo governo”. Contudo, ao longo das páginas das “Farpas”, encontramos o que designa como um “panfleto revolucionário”, que punha “a ironia e o espírito ao serviço da justiça”, enquanto causas semelhantes às dos Gracos, de Spartacus, de Moisés ou de Cristo… E, dez anos passados sobre o movimento revolucionário de Paris, nos anos oitenta, dirá: “os vencidos de então são hoje cidadãos formidáveis, armados não de uma espingarda revolucionária, mas de um legal boletim de voto, e que, em lugar de erguer barricadas nas ruas, fazem deputados socialistas nas eleições”.
Proudhon, o autor lido e venerado no Cenáculo de S. Pedro de Alcântara, entre a fumarada dos cigarros dos jovens amigos de Antero, continuará bem presente no pensamento inconformista do autor de “A Relíquia”. E não se preocupava ainda o Fradique tardio com a “miséria das classes – por sentir que nestas democracias industriais e materialistas, furiosamente empenhadas na luta pelo pão egoísta, as almas cada dia se tornam mais secas e menos capazes de piedade”? E não disse o próprio Eça, com apenas 22 anos de idade, no “Distrito de Évora” que “as revoluções não são factos que se aplaudam ou que se condenem? Havia nisso o mesmo absurdo que em aplaudir ou condenar as evoluções do Sol. São factos fatais. Têm de vir. De cada vez que vêm é sinal que o homem vai alcançar mais uma liberdade, mais um direito, mais uma felicidade”? O certo é que esta mesma preocupação (pela justiça e pela igualdade) vemo-la projetada, mais tarde, desde o conto “S. Cristóvão” à crónica “Um Inverno em Paris”, para não falar nos ecos do poderoso ensaio de Antero de Quental sobre as “Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX” que Eça glosa, aludindo ao “Bem Supremo, fim verdadeiro de toda a vida, fim divino a que tende o Universo. Em resumo, a lei moral do homem é o constante aperfeiçoamento e progressiva santidade”.
Misteriosamente, encontramos em “A Ilustre Casa de Ramires” algo que o brasileiro Álvaro Lins descobre com perspicácia: “mais do que em João da Ega, é em Gonçalo Ramires que Eça pode ser encontrado. João da Ega será uma imagem da sua mocidade, dos seus projetos, das suas ‘blagues’, do seu tipo exterior e convencional – de tudo o que ele seria se tivesse falhado. Mas em Gonçalo, a mais analisada e a mais conhecida das suas personagens, é onde Eça está. Onde estão, pelo menos, alguns dos seus sentimentos mais fortes, da sua maneira de ser, da sua posição em face da vida. E é curioso que Gonçalo, ao contrário de Fradique, sendo Portugal, sendo Eça, sendo o homem-português, permaneça ainda Gonçalo Ramires. Nem o sectarismo, nem o sentimento, nem o patriotismo, em Eça de Queiroz – nada, nem ele mesmo – perturba a criação artística”. Beatriz Berrini falará, por isso, de um “intelectual discrepante”. E nesta discrepância está o paradoxo que leva Eça (e os seus amigos) a serem considerados como “Vencidos”, quando de facto são vencedores, quer pela influência decisiva que se estende aos nossos dias, quer pela mensagem, a um tempo crítica e mobilizadora, de recusa terminante de derrotismo ou desistência, já que eles, de facto, não baixaram os braços. E a contradição de Gonçalo é claríssima, sabendo que a História, mais do que um motivo de orgulho retrospetivo torna-se demonstração de que a responsabilidade fica do lado da ação…
Para entender, basta ler Antero em “A Província” no texto “Expiação”, na sequência do Ultimatum inglês: “o nosso maior inimigo não é o inglês, somos nós mesmos. Só um falso patriotismo, falso e criminosamente vaidoso, pode afirmar o contrário. Declamar contra a Inglaterra é fácil: emendarmos os defeitos gravíssimos da nossa vida nacional será mais difícil, mas só essa desforra será honrosa, só ela salvadora. Portugal ou se reformará política, intelectual e moralmente ou deixará de existir”.
GOM