Tão diferentes, tão próximos. Ambos morreram prematuramente, com 31 anos de idade, da mesma enfermidade. Não se conheceram, um era médico no Porto, o outro empregado comercial em Lisboa. Vitimou-os a terrível tuberculose – doença incurável e fatal à altura, que dominou os dramas do Romantismo. O romancista e o poeta protagonizaram o terrível destino que dominava o seu tempo. A leitura de ambos, apesar das profundas distâncias, corresponde a compreendermos a circunstância em que viveram.
Júlio Dinis (1839-1871) é um autor maior, profundamente influenciado pela melhor literatura britânica. Não é possível conhecer a sociedade portuguesa do seu tempo sem ler os seus romances, onde se nota, com nitidez a coexistência da sociedade antiga, patriarcal e conservadora com as manifestações e anseios de modernidade. É o Portugal profundo que se confronta com o mundo em mudança. Numa leitura superficial, pareceria que são os fatores conservadores a prevalecer. Contudo, Júlio Dinis anuncia já a mudança, o realismo e o naturalismo. Leia-se As Pupilas do Senhor Reitor, publicado em 1866, Uma Família Inglesa, retrato da vida citadina e da pequena burguesia nascente (1868), A Morgadinha dos Canaviais, a melhor análise da vida política do constitucionalismo liberal, o ainda As Pupilas do Senhor Reitor, adaptadas com sucesso ao teatro e representadas na Trindade. Em 1869, parte para a Madeira, em busca de melhoras da doença. Em 1870, no Porto publica os Serões da Província e conclui Os Fidalgos da Casa Mourisca, cujas provas tipográficas já não acaba de rever. A leitura da obra romanesca de Júlio Dinis permite-nos lidar com uma literatura que acompanha a evolução de uma sociedade que se emancipa progressivamente pelo exercício da liberdade.
Cesário Verde representa o novo tempo. Nasceu em Lisboa, na freguesia da Madalena – a 25 de Fevereiro de 1855. Teve uma vida e uma obra brevíssimas. Por um triz, poderiam ter ficado esquecidos o seu génio poético e um sinal evidente de modernidade. Teve razão antes de tempo. E Ramalho Ortigão enganar-se-ia redondamente ao criticar “Esplêndida” (“Ei-la! Como vai bela! Os esplendores / Do lúbrico Versalhes do Rei-Sol / Aumenta-os com retoques sedutores.”) e ao aconselhar o jovem a tornar-se “menos Verde e mais Cesário”… A incompreensão foi regra na receção dos seus poemas. Esse facto amargurou profundamente o jovem poeta. Inconformista, dizendo-se praticante do “protesto franco e salutar em favor do povo”, Cesário foi um inovador sensível, inclassificável nas escolas e nos grupos. Não foi um literato profissional. Viveu entre a casa comercial do pai, a loja de ferragens da Rua dos Fanqueiros, o campo, de Linda-a-Pastora ao Paço do Lumiar, e a poesia nas horas vagas. Dirá: “Pobre da minha geração exangue / De ricos!”. A sua originalidade esteve em pôr o concreto na primeira linha da sua criação. Um dia disse: “Eu sou frio, pausado, calculista como todas as organizações criadas neste meio comercial”. No momento em que o seu amigo Silva Pinto o levou até ao Dr. Sousa Martins, já com a sentença traçada da inexorável tuberculose, disse maquinalmente ter como profissão “empregado no comércio” – mas logo pediu que fosse explicado ao médico, que era mais do que isso… O contacto com o concreto tornou-o moderno, numa sociedade de progressos materiais e de melhoramentos (“Sei só desenho de compasso e esquadro, / Respiro indústria, paz, salubridade.”). Cesário foi um citadino, um cosmopolita – “Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo”… Lisboa era uma encruzilhada de sensações, matéria-prima de “O Sentimento de um Ocidental”. Cesário abriu caminho ao século XX, quase sem se aperceber disso. Ficou para trás o lirismo superficial e pobre! Romantismo, realismo, modernismo, surrealismo – todos se encontram em Cesário: “Ah! Ninguém entender que ao meu olhar / Tudo tem certo espírito secreto”… Almada Negreiros teria pensado em Cesário ao pintar os seus painéis? Que emoção ao ouvir: “E o fim da tarde inspira-me; e incomoda! / De um couraçado inglês vogam os escaleres; / E em terra num tinir de louças e talheres / Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda”. A 19 de Julho de 1886, Cesário morre. Era o camponês que “andava preso em liberdade pela cidade”, como diria Alberto Caeiro. Em Abril de 1887, Silva Pinto publicaria “O Livro de Cesário Verde”, obra póstuma e única. O início do novo século trouxe a consagração.
Júlio Dinis retrata-nos o seu tempo e Cesário antevê, para além do imediato, o futuro…
GOM