Quando lemos “A Ilíada”, encontramos a referência aos melhores cavalos de Aquiles, Balio e Xanto, provenientes das “margens do rio Oceano”. Tudo leva a crer que Homero se referia às costas atlânticas da Península Ibérica, tornadas célebres pelos seus equídeos. Do mesmo modo, Xenofonte refere-se aos cavalos ibéricos tidos como invencíveis, que combatiam na Grécia como mercenários. Segundo os mais probos estudiosos, como Ruy d’Andrade, a arte da equitação teria nascido nas planícies do Tejo, onde hoje se cria o Cavalo Lusitano. E, de acordo com a mitologia antiga, a lenda do Centauro, metade homem e metade cavalo, teria sido originada na mesma região do Tejo, onde autores árabes do tempo da conquista moura aludem à crença muito antiga de que as éguas eram fecundadas pelo vento, tal a velocidade e destreza de seus filhos. Assim, o Puro-Sangue Lusitano faz parte das mais antigas referências das culturas mediterrânicas, podendo ver-se já as suas características fundamentais nas representações das grutas do Escoural – em contraste com os garranos primitivos das montanhas, pintados em Lascaux ou Altamira.
Depois de um momento de glória, em que os cavalos lusitanos eram requisitados para todas as cortes da Europa, pelas suas qualidades artísticas, houve um tempo que pareceu condenar à extinção tão célebre estirpe, esgotada nas campanhas napoleónicas e subalternizada pela moda do Puro-Sangue Inglês. Foi possível, porém, a recriação do cavalo lusitano já no século XX – dócil, sofredor, generoso e ardente – e é essa saga que constitui matéria-prima para o renascimento atual do Puro-Sangue Lusitano. E quando falamos de uma identidade cultural que se afirma e consolida, a propósito de um rico património equestre, estamos a referir-nos à lição fundamental da cultura portuguesa, como realidade multímoda e complexa, que apenas se enriquece quando se abre ao exterior e tem a generosidade e a inteligência de se fortalecer em diálogo com os outros, mercê das trocas, dos encontros e da capacidade de se tornar melhor.
O Puro-Sangue Lusitano é um bom símbolo da cultura portuguesa – menos caracterizada pela de adaptação e mais pela persistência, maturação e gradual afirmação própria. Importa. aliás, recordar Mestre Joaquim Miranda, o último mestre-picador da Casa Real a percorrer então a pacata cidade de Lisboa com os seus alunos, fazendo jus à velha tradição setecentista da Real Picaria … E foi a consideração das qualidades equestres do Puro-Sangue Lusitano que recuperou a ancestral tradição do cavalo de Finisterra. E não podemos esquecer Frei António das Chagas no poema dedicado ao cavalo do Conde do Sabugal, em que “na harmonia de cadências tantas, / É clave o freio, é solfa o movimento. / Ao compasso da rédea, ao instrumento do chão que tocas, /quando a vista encantas…” Ao longo das páginas que se seguem tomamos conhecimento, em testemunho direto, de uma história de amor e de persistência de cultura e de arte – sobre o puro-sangue lusitano. E voltamos a Frei António das Chagas: “Cantam teus pés e teu meneio pronto, / Nas fugas, não, nas cláusulas medido, /Mil consonâncias forma em cada ponto…” Que melhor elogio poderemos ter da harmonia e da destreza, da fidelidade e da nobreza? Bruno Caseirão em “O Cavalo Lusitano – Tradição, Cultura e Património Equestre” ilustra bem a história muito rica dessa heroica estirpe de equídeos ibéricos.
GOM