Nesta nossa peregrinação em busca das melhores coisas portuguesas, vimos do Monte da Caparica, onde encontrámos Bulhão Pato, e agora damos um salto até ao Algarve, mais concretamente a S. Bartolomeu de Messines, para invocar a memória de João de Deus e da sua extraordinária “Cartilha Maternal – ou Arte de Leitura”. Relacionamos dois amigos que se admiravam mutuamente. Poderíamos invocar o grande poeta que João de Deus foi, mas preferimos o pedagogo. Uma breve nota para dizer que, estudante de Coimbra, João de Deus se dedicou mais à lírica e às canções do que ao estudo das sebentas – e o resultado foi que a sua passagem pela Lusa Atenas se traduziu em dez anos, tantos, como ele sempre lembrou, como os da guerra de Tróia.
João de Deus nasceu em 8 de março de 1830, filho de Isabel Gertrudes Martins e de Pedro José dos Ramos, era o quarto de catorze irmãos, estudou latim na sua terra natal e ingressou no Seminário de Coimbra. Em 1850, aos 19 anos de idade, entrou na Universidade para estudar Leis. Envolvido na vida boémia, teve um percurso académico conturbado, com interrupções e reprovações por faltas. Mas, logo em 1850, revelou dotes poéticos, escrevendo versos que circularam manuscritos no meio académico. São de 1851 o poema Pomba e a elegia Oração, logo reconhecidos e ganha reputação como poeta lírico. Em 1858 tem uma crítica fortemente elogiosa A propósito de um Poeta, publicada no Instituto por Antero de Quental. Terminado o curso, fica em Coimbra, com pouca advocacia e alguma poesia, de carácter satírico. Escreve A lata (1860, primeira obra autónoma) e A Marmelada. Em 1862 aceita ser redator de “O Bejense”, colaborando na imprensa regional do sul. Regressa a Messines em 1864, onde redige a Folha do Sul, optando em 1868 por partir para Lisboa. Para sobreviver faz traduções, escreve sermões e hinos para cerimónias religiosas, além de colaborações literárias várias. Por insistência de amigos, apresenta-se às eleições gerais de março de 1868 (ano da janeirinha) como candidato independente pelo Círculo de Silves, saindo vitorioso, apesar de combate renhido e de um desempate. Sobre o Parlamento disse ao “Correio da Noite” em 1869: “Que diacho querem vocês que eu faça no Parlamento? Cantar? Recitar versos? Deve ser gaiola que talvez sirva para dormir lá dentro a ouvir a música dos outros pássaros. Dormirei com certeza!”. Regressado à vida civil torna-se um poeta reconhecido, publicando “Flores do Campo” (1869) e depois, por Teófilo Braga, “Campo de Flores” (1893), celebrada antologia.
Em 1876, menos de um ano depois da morte de António Feliciano de Castilho e perante a perda de influência do método de leitura criado por este, João de Deus envolve-se na campanha de alfabetização, escrevendo a “Cartilha Maternal”, um novo método de ensino da leitura, que o haveria de distinguir como pedagogo, revendo o método de Castilho e considerando os contributos de Pestalozzi e Froebel, dando-lhes um carácter de maior consistência e maturidade, graças à consideração do ritmo poético. Herculano, pouco antes de morrer e Adolfo Coelho consideram o contributo excecional. O método, bastante inovador, foi dois anos depois, e por proposta do deputado Augusto Portugal Ribeiro aprovado como o método nacional de aprendizagem da escrita da língua portuguesa. Graças a esta decisão, João de Deus teve nomeação vitalícia como “Comissário Geral da Leitura”, morrerá em 1896. Mercê do mecenato de Casimiro Freire (1882) e do empenhamento do filho do poeta, João de Deus Ramos, na Associação de Escolas Móveis (1908), com o apoio de João de Barros, cria-se, a partir de 1911, a rede de Jardins-Escola João de Deus (sendo o primeiro em Coimbra) com influência decisiva até aos nossos dias. E a perenidade do sucesso deve-se ao seu fundamento poético e artístico!
GOM