Pedras no meio do caminho

XVI. Sempre Fernão Mendes Pinto

É inesgotável a leitura da «Peregrinação». E ainda há muito caminho a fazer para compreendermos a importância desta obra única. Este é o fantasma com quem mais gosto de lidar. É um espírito autêntico, daqueles que a história nos reserva e podemos encontrar onde menos se espera. Ele, de facto, deixou toda a sua vida bem marcada no tempo e se houve quem duvidasse da sua existência e da sua verdade, fica-nos a certeza de que a personagem de António Faria é mesmo meio pessoa meio fantasma, por ser uma espécie de alter ego de Fernão Mendes. No seu caso nunca saberemos a verdade absoluta, mas sabemos, de ciência certa, que tudo o que ele passou foi algo que não deixou de acontecer, qualquer que seja o protagonista… Fernão Mendes Pinto construiu, no dizer de António José Saraiva, «um Oriente espantosamente humano, com estilo próprio. Um Oriente que não é feito só de cidades, templos e esculturas, mas também do estilo falado, de etiquetas humanas, de sentimentos típicos». Eis uma vantagem fantástica. Hoje sabemos da verosimilhança de tudo quanto nos relatou. Pode até ter acontecido que não sendo ele, Fernão Mendes, o real protagonista de tudo, facilmente entendemos que tudo ocorreu de facto. E os estudiosos desse período são os primeiros a considerar que não é possível compreender o que João de Barros ou Diogo do Couto nos disseram sem ler Fernão Mendes Pinto. Enquanto as personagens dos cronistas talvez tenham feito o que dizem, as da “Peregrinação” marcaram mesmo a sociedade em que viveram e ainda hoje são relevantes…

O Padre Adelino Ascenso, missionário experimentado e culto com larga experiência no Japão, tem tido oportunidade de explicar urbi et orbi o difícil romance de um profundo entendido nas relações com os portugueses Shusaku Endo “Silêncio” (que Martin Scorsese levou à teka), sobre a apostasia de um jesuíta português no século XVII: “O Senhor não ficará em silêncio. Mesmo admitindo que Ele se mantenha calado, toda a minha vida até hoje falará d’Ele para todo o sempre”. Estava em causa a barreira de cultura entre uma religião estrangeira e a cultura japonesa. No entanto, o cristianismo no Japão é heterogéneo e surpreendente – há os mártires e os cristãos escondidos, os que deram testemunho e os outros, que preferiram mergulhar na vida japonesa, dilacerados entre a fidelidade do gesto e a fidelidade do princípio, tendo como fundo o silêncio dramático da dúvida e do remorso. “Podes pisar-me!” – parecia dizer Cristo representado no “fumie” usado para consumar a negação. Afinal, há o mistério do silêncio – ausência de palavras, audição do universo e fidelidade íntima. A distância cultural é mais forte do que os julgamentos precipitados. Fernão Mendes deve ser lembrado (como António Alçada gostava de fazer), sobre uma célebre conversa do Mestre Belchior com o rei japonês do Bungo: «o padre lhe tornou que muito satisfeito estava de seu bom propósito, mas que se lembrasse que a vida não estava nas mãos dos homens, pois todos eram mortais, e se ele acertasse de morrer antes (de se batizar), onde iria a sua alma? Ao que ele, sorrindo-se, disse: – Deus o sabe…».

Agostinho de Morais

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