Ironia das ironias! Bulhão Pato é conhecido por algo que não fez, as ameijoas, por um pequeno equívoco, espalhado como falsa notícia. Essas amêijoas não são suas, mas sim uma homenagem (a ele mesmo) do grande João da Matta, o mais célebre dos chefes de cozinha do final do século XIX.
Pato era gastrónomo de primeira classe, mas as suas receitas eram de caça, que servia principescamente na casa do Monte da Caparica. Paulo Plantier («O Cozinheiro dos Cozinheiros») dá-nos o menu coevo: Açorda à Andaluza (com azeite Herculano), Perdizes à Castelhana, Arroz opulento e Lebre à Bulhão Pato. Lebres e perdizes são as que Bordalo Pinheiro representa no “Álbum das Glórias”. E João da Matta quis deixar clara a sua admiração pelo seu amigo dedicando-lhe as celebradas amêijoas!
Raimundo António de Bulhão Pato nasceu em Bilbau e morreu no Monte da Caparica (1829-1912), viveu a sua infância no país basco. Em 1837, a família veio para Portugal e em 1845 o jovem inscreveu-se na Escola Politécnica, frequentando, desde muito cedo os meios literários, onde conheceu Herculano, Garrett, Andrade Corvo, Latino Coelho… Com Herculano estabeleceu uma relação intensa, patente nas recordações através das quais conhecemos muitos pormenores biográficos do historiador. Como poeta cultivou a influência romântica. Em 1866 publicou a muito celebrada «Paquita». Apesar dos elogios dos seus contemporâneos, foi como memorialista de primeira água que Bulhão Pato se afirmou. Escritor dotado e de pena fácil dedicou-se ao jornalismo. Amigo de Antero de Quental, sobre este disse: «bem no fundo, Antero foi sempre um romântico. Até no morrer como Werther! No temperamento extremamente sensível, o influxo da educação dos primeiros anos e a natureza do País em que nasceu, desenvolveram-lhe a sensibilidade, e a luta constante. (…) O entusiasmo é bom; mas a crítica é melhor – exclamava ele repetidas vezes. E foi sempre muito mais entusiasta do que um crítico; foi, acima de tudo, um poeta, e como poeta fez a sua obra-prima! Ainda bem!».
Sobre a viagem de Antero de Quental a Nova Iorque, o relato de Bulhão Pato esclarece tudo a propósito da suposta troca com João de Deus. Antero era amigo próximo de Pato, conviviam, nos anos setenta, às quintas-feiras jantavam. «Comia pouco mais que um pintassilgo na sua gaiola; não o atormentava a digestão, que lhe fora tantas vezes cruel! O exercício da palavra, depois do breve jantar, fazia-lhe bem». Pato admirava-o. Sobre a perfeição da verve disse do poeta micaelense: «a língua, que principiava a ser desfeiteada, respeitou-a ele sempre. Percebeu que quanto houvesse moderno, seguindo todas as correntes, numa evolução progressiva, se podia dar dentro dela”. Também Antero estimava Bulhão Pato, de quem disse, em 1873: «literariamente as tuas sátiras são um verdadeiro triunfo; rigor, concisão, simplicidade, – naturalidade. Tens ali versos que hão de ficar na língua». Era um sinal sincero de amiga bondade. O último encontro que houve entre os amigos foi em setembro de 1885, estava Antero em casa de Oliveira Martins no Porto.
A proximidade permite-nos conhecer muitos dos pormenores da vida do mestre Herculano: «viajar (com ele) era, às vezes, ouvir lições de história, na mais elevada, elegante e ao mesmo tempo despretensiosa linguagem”. (…) «Herculano era generoso, mas económico. Comprado Vale de Lobos, aplicou todos os rendimentos ao custeio da propriedade rural e à edificação da casa» (…) «Azeite de prato, como é notório, era coisa que não se conhecia em Portugal”. Foi Herculano quem começou a fabricar o precioso azeite em Vale de Lobos. E Bulhão Pato ainda explica: «Os invejosos mordazes até inventaram que A.H. era homem áspero e brutal no trato. Não conheci ninguém mais sincero, mais simples e ao mesmo tempo mais amorável e sem afetação, delicado».
GOM