Neste folhetim de Verão de 2021, temos viajado de lés a lés, acompanhámos uma violoncelista genial, que viu abrirem-se as perspetivas de formação graças à intervenção da Rainha D. Amélia. Antes desse episódio, porém, já o Rei D. Fernando II e a Condessa de Edla tinham protagonizado um importante apoio, dado a um jovem pianista José Vianna da Motta (1868-1948), nascido em S. Tomé, que viria a ser compositor e intérprete com reconhecimento mundial. Aos 14 anos concluiu estudos no Conservatório Nacional, onde estudou com Joaquim Francisco de Azevedo Madeira e Freitas Gazul, destacando-se como menino prodígio em concertos públicos muito divulgados e apreciados. Graças à bolsa de estudos da coroa, o jovem foi para Berlim em 1882, onde frequentou o Conservatório dirigido por Xavier Scharwenka, recebendo ainda lições privadas de piano e composição, entre 1886 e 1889, de Carl Schaeffer, da Sociedade Wagneriana. O jovem ingressou, aliás, na Sociedade Wagneriana em 1885 começando a frequentar o Festival de Bayreuth desde o ano anterior e a refletir intensamente sobre a obra e a influência de Richard Wagner. Foi dos últimos alunos de piano de Franz Liszt em Weimar e, em 1887, frequentou em Frankfurt o curso de interpretação pianística de Hans von Bülow. É essencial o testemunho do estudante sobre essa experiência, já que assim se tornou um dos mais fieis intérpretes de Beethoven, como reconheceram os melhores especialistas. Com Philip Wolfrum, fundador da Sociedade Bach de Heidelberg estudou em 1891 direção de orquestra.
Vianna da Motta tem uma carreira profissional brilhante iniciada em 1886 e desenvolvida ininterruptamente até 1945, com uma primeira digressão europeia em 1888 – Copenhaga, Helsinquia, Moscovo e S. Petersburgo. Apesar de residir em Berlim não deixou de vir regularmente a Portugal. Em 1892 apresenta-se em Nova Iorque, onde conhece Feruccio Busoni, também antigo aluno de Liszt. Em 1896 apresenta-se no Brasil com Bernardo Moreira de Sá, iniciando uma presença muito celebrada na América do Sul, designadamente em Buenos Aires. Entre 1900 e 1905 tem intensa atividade docente em Berlim, mas com o início da Guerra de 1914 perde o visto na Alemanha e é contratado pela Escola Superior de Música de Genebra. Em 1917 assume em Lisboa a direção do Conservatório Nacional (1918-1938), coordenando com Luís de Freitas Branco a reforma curricular da instituição e do ensino da Música e Artes. Entre os seus muitos discípulos contam-se Sequeira Costa, Maria Helena Sá e Costa, Campos Coelho, Nella Maissa e Fernando Lopes-Graça. Como compositor, Vianna da Motta introduz, numa tendência europeia, os temas nacionais na sua obra. E afirma: “Talvez a canção popular seja o melhor caminho para chegar à alma do povo, mas terá então de encontrar-se a própria expressão para o sentimernto da nação. E este é o mais alto ponto de vista”. Insere-se nesta preocupação a Sinfonia “À Pátria”, de inspiração beethoveniana, apresentada em primeira audição em Lisboa em 1894 no salão Neuparth numa redução para piano interpretada pelo próprio autor. António Arroyo dirá: “A Sinfonia em Lá maior ‘À Pátria’ é uma página de elevado simbolismo, uma síntese luminosa e profundamente sugestiva dum momento histórico determinado; o autor, representando o momento de crise em que a pátria parece soçobrar, fá-la ressurgir de novo para uma vida gloriosa num como rejuvenescimento da alma nacional”.
A criatividade do grande artista encontra-se no conjunto de obras do período 1881 a 1905, conservando-se a maior parte dos autógrafos no Centro de Estudos Musicológicos da Biblioteca Nacional de Portugal. Um primeiro grupo integra as obras da infância escritas para piano (1875-1883) – marchas, peças e baile e fantasias sobre temas populares. Um segundo grupo tem as obras compostas entre 1884 e 1895, que corresponde à formação na Alemanha, com peças para piano, Lieder e várias composições instrumentais nos géneros clássicos – incluindo a “Fantasia Dramática” (1893) para piano e orquestra, na tradição lisztiana.
Vianna da Motta é uma referência na cultura portuguesa, muito para além da musicologia, uma vez que concebeu a valorização da identidade portuguesa, não numa perspetiva fechada, mas numa lógica de diálogo e de intercâmbio universalista e cosmopolita, na linha dos maiores autores mundiais.
GOM