O magistral Alexandre Herculano foi alguém que se singularizou como um português de horizontes largos, um historiador probo e moderno, fiel às provas e à ciência, fundador da historiografia contemporânea, um cidadão comprometido e exemplar.
Escritor de perfil clássico, foi dos mais dotados no manejo da língua e uma enorme figura moral – “homem de um só parecer. Dum só rosto, uma só fé, de antes quebrar que torcer…”, da têmpera de Francisco Sá de Miranda. Ouvimos ainda os ecos da sua prosa militante: “Que o país seja governado pelo país é a nossa divisa. Como realização deste princípio, temos pugnado pela verdade do sistema parlamentar, apesar do descrédito a que a reação europeia o tem levado no continente; temo-nos esforçado por incutir aos nossos concidadãos a ideia de que só nele sinceramente respeitado pode estar a nossa marcha segura no caminho do progresso. Por isso temos pelejado contra os que, a troco de promessas de melhoramentos materiais, fecharam os olhos aos atentados dirigidos contra o dogma essencial das nossas crenças políticas. Por isso temos fulminado os escândalos, as malversações eleitorais, os diplomas de representante da nação passados por portaria, e o desprezo calculado dos princípios parlamentares erigidos em sistema pelo Governo atual” (1853).
Filho de um recebedor da Junta dos Juros e sobrinho por parte mãe de António Gil, o construtor que deu nome ao célebre Pátio onde nasceu, Alexandre Herculano é um símbolo forte do seu tempo. Estudou na Congregação do Oratório de S. Filipe Néri, nas Necessidades, e depois seguiu estudos na Aula do Comércio, não tendo tido possibilidade, como era seu desejo, de cursar na Universidade de Coimbra, por vicissitudes da guerra civil. A partir de 1829, vemo-lo a defender a causa liberal, participando na sublevação de 21 de agosto de 1831 do Infantaria 4, que o levou para o exílio, primeiro em Inglaterra e depois em França, juntando-se, em 1832, nos Açores, à causa da regência de D. Pedro. Nesse mesmo ano, desembarca na praia do Pampelido, entre os bravos do Mindelo, como Garrett. No Porto, é dispensado do serviço militar ativo, para ser bibliotecário na Biblioteca Pública e para reorganizar os fundos das livrarias monásticas, a começar em Santa Cruz de Coimbra. Na Revolução de Setembro de 1836, mantém-se fiel à Carta, que jurara, e escreve “A Voz do Profeta”, onde critica a nova situação, afirmando o seu cristianismo, contraditório não com a liberdade, mas com o despotismo, não com o novo, mas com o antigo regime, e procurando uma plataforma onde se encontrem o livre exame e a autoridade. Na redação da revista “O Panorama” (1837) e na direção do “Diário do Governo” demonstra as suas qualidades de pensador e cidadão. É um homem dividido entre o respeito da tradição e a rejeição das idolatrias. Para ele, o soldado liberal deveria hastear a cruz sobre o pendão da liberdade e tornar-se apóstolo da “fraternidade espiritual”. Em “O Pároco da Aldeia” (1844) procura conciliar as antigas formas rituais com a liberdade, o tradicionalismo e o reformismo. Concorda com a Constituição de 1838 por entender como positivo o compromisso alcançado. É o tempo da “Harpa do Crente”. D. Fernando II, seu amigo e admirador, nomeia-o diretor das bibliotecas reais da Ajuda e das Necessidades. Sob influência de Rodrigo da Fonseca, é eleito deputado pelo Porto, em 1840. Não é um orador, mas trabalha intensamente no campo do ensino popular com Vicente Ferrer do Neto Paiva. Com a restauração cartista de 1842, assume posição critica relativamente ao consulado de Costa Cabral. A sua residência da Ajuda torna-se centro de conspirações. Os anos quarenta são, no entanto, um período fecundo da sua criação literária e das suas reflexões históricas.
“Eurico, o Presbítero” é de 1844 e o primeiro volume da “História de Portugal” sai em 1846. Aí, recusa as interpretações providencialistas e encontra “a verdadeira origem da independência de Portugal” na ideia de nacionalidade, “que amadurecera e radicara nos ânimos de modo indestrutível e que sucessivamente se apoderara dos espíritos do Conde D. Henrique, de D. Teresa e do filho deles”.
A clara desafeição em relação à política de Costa Cabral por parte do próprio rei D. Fernando II leva Herculano a romper em 1850 com a neutralidade, assinando à cabeça o protesto dos intelectuais portugueses contra a lei das rolhas. Pode dizer-se que a alma da Regeneração de 1851 está em Alexandre Herculano. O movimento impor-se-á graças ao penhor moral do historiador, que depressa compreendeu que não eram as suas ideias ou o seu grupo que prevaleciam. Rodrigo domina o novo partido Regenerador, e Herculano considera ser isso negativo, sendo fundamental criar um polo político de alternância, que será o partido histórico, em cuja criação e concretização se empenha.
Nasce primeiro “O País”, e depois “O Português”, jornais críticos da lógica situacionista. O escritor torna-se um militante ativo da reforma nacional no sentido da concretização da legislação de Mouzinho da Silveira, da liberdade económica, do fim dos constrangimentos políticos e sociais do antigo regime, da concretização do programa municipalista contra o centralismo. Numa palavra, deveriam criar-se condições para que o país governasse o país. E D. Pedro V seria o primeiro homem moderno que houve em Portugal, mas morreria na flor da idade. Alexandre Herculano manter-se-ia fiel ao espírito de sempre: da procura de uma síntese entre a tradição e a modernidade, com um empenhamento intenso pela reforma do país, de modo combater o atraso e a intolerância.
A partir de 1867 tornar-se-á agricultor de sucesso em Vale de Lobos, num gesto moral de recusa do conformismo. No entanto, nesse período final da vida Herculano seria procurado pela juventude intelectual como referência e exemplo. Que magnífico sinal de vitalidade intelectual e cívica!
GOM