Reler “Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil” (2 volumes) da autoria de Jaime Cortesão (Portugália, 1966) é tomar contacto com uma obra aliciante que segue um percurso que nos permite ver sucessivamente a Geografia e a etnografia da América do Sul, “a reação ao Tratado de Tordesilhas e o mito da ilha-Brasil”, o fenómeno do bandeirismo sob os Filipes, Raposo Tavares e as primeiras bandeiras, as origens sociais do bandeirante, a primeira e a segunda bandeira de Guairá, os bandeirantes e os jesuítas no Tape, a restauração da independência portuguesa, o plano, o desenvolvimento das bandeiras e as respetivas conclusões. Quando acabámos de recordar o papel unificador da língua desempenhado durante o consulado do Marquês de Pombal é oportuno dar um passo atrás para compreendermos como foi possível construir um território tão solidamente identitário como o Brasil. A obra de Jaime Cortesão é de 1958 e surgiu no Rio de Janeiro, numa edição do Ministério da Educação e Cultura do Brasil, sendo escrito para a “Societé d’Études Historiques D. Pedro II, sob patrocínio de Ricardo de Moura Seabra. “Como Vasco da Gama em relação ao Índico, ou Fernão de Magalhães ao Pacífico, Raposo Tavares mediu a sua grandeza por dois dos maiores padrões da Natureza, os Andes e o Amazonas” – disse historiador português. Salientando a luta contra os jesuítas portugueses e espanhóis, o autor conclui: “Melhor do que D. João IV e seus conselheiros, (Raposo Tavares) defendeu juntamente o espírito da grei, fiel à tradição da aventura descobridora; e os interesses duma nação, para quem a expansão do Estado nos Mundos Novos representava um impulso e uma necessidade vitais”.
De facto, o Brasil e a América do Sul são fruto de movimentos contraditórios e complementares. Os Bandeirantes levaram as fronteiras onde se julgava ser impossível chegar, os índios ora foram perseguidos ora foram protegidos, e os jesuítas representaram o contraponto aos Bandeirantes, empenhados no ensino e na criação das reduções em nome da dignidade humana e de um de criação de pequenas repúblicas autónomas… Iremos confrontar-nos com tais paradoxos e tentar compreender que a cultura brasileira é produto dessas várias influências. Partiremos da cidade de S. Paulo de Piratininga, onde os Padres Manuel da Nóbrega e José da Anchieta fundaram o colégio da Companhia de Jesus para catequese dos índios, no dia da conversão de Paulo de Tarso, em 25 de Janeiro de 1554, num barracão feito de taipa de pilão, entre os rios Anhangabaú e Tamanduatei. Em 1560, iniciou-se o povoamento da futura cidade, tendo o governador Mem de Sá enviado para a vizinhança do colégio a população da vila de Santo André da Borda do Campo. E não se esqueça a figura mítica de João Ramalho, natural de Vouzela (1493-1582), que viveu entre os índios tupiniquins, foi genro do cacique Tibiriçá, e contribuiu para a aproximação entre os índios que liderava e Martim Afonso de Sousa… Fundou uma dinastia de mamelucos ou caboclos que teria no século XVII destaque na epopeia dos bandeirantes.
S. Paulo manteve-se durante dois séculos, como uma vila pobre e isolada, cuja riqueza provinha da lavoura de mera subsistência. Por ser uma das regiões mais pobres da colónia tornou-se centro de irradiação dos chamados Bandeirantes, aventureiros que se dispersaram pelo interior do Brasil em busca de riqueza, de índios, de ouro e de diamantes. Partiam de São Paulo e de São Vicente e dirigiam-se para o interior pelas florestas desconhecidas, seguindo o rio Tieté, um dos principais meios de acesso para o interior do território. As expedições eram designadas como “Entradas” ou “Bandeiras”. As primeiras eram oficiais, organizadas pela administração territorial, enquanto as “Bandeiras” eram financiadas por senhores de engenho, donos de minas e comerciantes, desejosos de encontrar novos recursos e novas riquezas. A descoberta do ouro na região de Minas Gerais nos final do século XVII mudou o curso dos acontecimentos e fez com que as atenções do reino se voltassem para São Paulo, elevada à categoria de cidade (1711). A partir do século XVII viveu-se a febre do ouro e das pedras preciosas. Então, bandeirantes como Fernão Dias Pais, o seu genro Manuel Borba Gato, concentram-se nas buscas de Minas Gerais. Mas outros foram além da linha do Tratado de Tordesilhas já que vigorava o regime da monarquia dual, ou seja, a união pessoal de Portugal e Espanha, e descobriram metais preciosos. Desenvolvem-se Goiás e Mato Grosso e destacam-se: António Pedroso, Alvarenga e Bartolomeu Bueno da Veiga, o Anhanguera. A lista dos bandeirantes foi crescendo. E quando vemos o monumento de S. Paulo, da autoria de Victor Brecheret (na Praça Armando Salles de Oliveira), vêm à memória os nomes de: Jerónimo Leitão, participante na primeira bandeira conhecida; Nicolau Barreto, que seguiu pelo Tieté e Paraná, percorrendo os sertões do Paraná, Paraguai e Bolívia, e regressou com índios capturados; António Raposo Tavares, que atacou missões jesuítas espanholas para capturar índios; Manuel Preto, Belchior Dias Coelho, Domingos Jorge Velho, que foi até ao Nordeste; e Francisco Bueno, que foi até ao Uruguai.
Pode dizer-se que os bandeirantes foram responsáveis pela expansão do território brasileiro, desbravando os sertões para além do meridiano de Tordesilhas e criando o Brasil de hoje. S. Paulo tornou-se, assim, uma grande metrópole, depois dos ciclos do açúcar e do café, de se ter tornado Cidade Imperial, da criação da Universidade, da industrialização e de ter sido a grande matriz do Brasil Moderno, onde teve lugar a mítica Semana de Arte Moderna de 1922 e onde está o MASP. As Bandeiras juntam-se à reduções jesuíticas e o povoamento do Rio Grande do Sul envolve a província de Tape como sete povos, a do Uruguai com dez reduções. A província do Paraná terá dez reduções entre os rios Paraná e Uruguai, e desenvolver-se-á uma tensão entre jesuítas e bandeirantes, da qual resultará uma síntese muito rica, que permitirá a unidade brasileira. E se com o tratado de Madrid de 1750 se operou a troca entre a Colónia de Sacramento e o Rio Grande do Sul, a verdade é que há uma cultura latino-ibero-americana que ainda hoje está viva e levou Jorge Luís Borges a dizer “A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires: La juzgo tan eterna como el água y como el aire”. Foi uma história marcante com elementos contraditórios, mas todos eles relevantes. Houve atrocidades, é certo; houve injustiças e destruições maciças, mas também houve vontade, determinação e anseios espirituais genuínos e a história do Brasil e da sua unidade geográfica, política e histórica deve-se a essa interessante fecundíssima dialética, que permitiu ao Brasil ser hoje o que é!
Agostinho de Morais