Cada Terra com seu Uso

XIII. Sebastião José de Carvalho e Melo e o Século das Luzes

Aproximando-se a chegada ao trono de D. José, D. Luís da Cunha, o experimentado diplomata, apresentou sugestões para um novo governo, indicando alguém que tinha experiência diplomática em Londres e Viena, na maturidade dos 50 anos, o que na altura era já uma idade avançada. Referia-se a Sebastião José de Carvalho e Melo, para a Guerra e Negócios Estrangeiros. Nestes termos, o “primeiro” Sebastião José assumiu uma missão muito concreta: arrumar as finanças do reino e reorganizar o Estado. Não há, assim, de início, um plano de ação que vise mais do que pôr ordem num Estado desorganizado e incapaz de responder aos novos problemas económicos. Porém, as dificuldades sentidas no Brasil por parte de Xavier de Mendonça Furtado, irmão do futuro marquês, e a resistência que encontra por parte dos jesuítas vão determinar uma viragem política centrada na necessidade de limitar o poder da Companhia de Jesus, no Brasil, que envolvia o risco da fragmentação do território. O “segundo” Pombal nasce a 1 de novembro de 1755. Inicia-se então o tempo do “terramoto dos homens” (1755-1759). Desde a destruição de Lisboa ao atentado de 1758, passando pela resistência dos jesuítas, pela tentativa de incriminação de Pombal junto de D. José e pelos motins do Porto, temos a constelação de acontecimentos que vai gerar um novo tipo de ação. Pombal tentou “preencher o sonolento vazio europeu em que Portugal sobrevivia desde D. João III”. Mas “não conseguiu” o que almejava, “não porque as medidas estivessem erradas, mas porque a violência por que as aplicou criou tanto um deserto em redor do Estado, de que tudo dependia, quanto um campo concentracionário de quase dois mil presos e exilados”. Os jesuítas foram expulsos e depois extintos por decisão papal (1773). E Pombal impôs a sua orientação, centrada nos poderes do rei, na limitação da nobreza e do clero e na definição de objetivos correspondentes a uma leitura parcial do interesse comum. Daí que o governante extremasse “dramaturgicamente uma situação política e cultural”: perante o vazio, “restabelecer o Estado”, sobre as ruínas do antigo Estado arcaico e incapaz. E, a partir de 1759, passou a haver plano, que antes não existia – o Erário Régio, o Colégio dos Nobres e a Universidade, a Intendência-Geral de Lisboa, a lei da Boa Razão, o fim da distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos, a subordinação da Igreja a uma conceção regalista. Urgia criar um corpo moderno de funcionários educados segundo as ideias de um iluminismo pombalino, dispostos a reformar o Estado e a Igreja.

Lisboa, cidade símbolo do novo tempo. 

Na altura do terramoto, Jácome Ratton, descrevia a cidade de Lisboa como um “recinto fechado que abrangia o bairro da Alfama, bairro do Castelo, Mouraria, rua nova, Rossio, bairro alto, Mocambo, Andaluz, Anjos e Remolares”, contando no resto, que depois conheceu princípio de urbanização, Santa Clara e Sant’Ana, o Salitre, Cotovia de baixo e de cima, Boa Morte e Alcântara, “apenas algumas casas aqui e acolá, à borla de caminhos que atravessavam por terras cultivadas”». Duas obras resistiram da cidade antiga: um bairro contruído a partir do século XVI, o Bairro Alto, que beneficiou da vizinhança de S. Roque e da casa professa dos jesuítas e o Aqueduto da Águas Livres, que em França se considerava ser «a mais magnífica e a mais sumptuosa empresa do género». A catástrofe em quase nada atingiu estes dois elementos, mas, ao invés, o luxuoso Teatro de Ópera, a Ópera do Tejo, inaugurado sete meses antes do terramoto, foi arrasado. Dois terços das ruas da cidade ficaram impraticáveis, das quarenta igrejas paroquiais, trinta e cinco desmoronaram-se, apenas onze conventos ficaram habitáveis. O Núncio Apostólico calculava que haveria quarenta mil mortos. Carvalho e Melo preferiu falar de 6 a 8 mil, mas o número correto teria sido de 12 a 15 mil… O rei D. José foi poupado, uma vez que estava em Belém, jurando a partir de então não mais desejar dormir em casa de pedra e cal. Daí ter sido construída no Alto da Ajuda, a «Real Barraca», em madeira, que viria, mais tarde, a ser consumida pelas chamas, por inadvertência de uma cozinheira. Perante um panorama desolador, haveria que «enterrar os mortos e tratar dos vivos», na fórmula tornada célebre da boca de Sebastião José, homem forte do novo tempo, mas que poderia ter sido proferida pelo duque de Lafões, Regedor das Justiças, que formava com o presidente do Senado da Cidade, marquês de Alegrete, e com o marquês de Marialva, Governador das Armas, a estrutura da governança de urgência. Para evitar desmandos e pilhagens, montam-se forcas em lugares estratégicos, como dissuasores. O futuro marquês de Pombal torna-se então ministro do Reino e rodeia-se do Estado-Maior do Exército para tomar as medidas urgentes e lançar de imediato a reconstrução da cidade. Houve quem dissesse que emergiu um segundo terramoto.

A Engenharia militar pontua, com decisiva influência. O General Manuel da Maia, engenheiro-mor, com os seus quase oitenta anos, e uma longa folha de bons serviços sob o reinado de três monarcas, apresenta as alternativas para a reconstrução: «as cinco hipóteses (…) podem classificar-se em duas ordens: na primeira vemos reedificar-se a cidade tal como era dantes, melhorada apenas pelo facto de serem novos os edifícios, mas vemos também (diz José-Augusto França) alargarem-se as ruas para melhor serventia e maior formosura do conjunto, e vemos ainda, de acordo com uma prevenção constante de Manuel da Maia, reduzir os edifícios reconstruídos à altura de dois pisos sobre as lojas. Na segunda ordem de programas encontramos duas ideias radicais: arrasar o que restava da cidade velha, na sua parte central, ou baixa, mais danificada pelo terramoto, e planifica-la com inteira e conveniente liberdade; ou abandonar a Lisboa antiga ao seu destino, deixando os proprietários dos prédios derruídos agir à sua vontade, e edificar outra, completamente nova, para os lados de Belém, aliás menos flagelados pela catástrofe – ideia que, de resto, andava no ar e teve eco numa correspondência da altura para o “Journal Étranger” de Paris». Este trabalho de reflexão é muito rico. Maia inclina-se para uma profunda renovação. Além de Belém, fala-se ainda na hipótese de S. João dos Bem-Casados (hoje Campo de Ourique / Amoreiras) – ou até de Buenos Aires (atual Lapa). Entretanto o jovem capitão Eugénio dos Santos, arquiteto do Senado da cidade, desenha arruamentos e edifícios, e para cada uma das ruas «a mesma simetria em portas, janelas e alturas». Os exemplos de Londres e Turim estão bem presentes, em nome do arejamento e do espaço para circulação. E aparece ainda o tenente-coronel Carlos Mardel (húngaro, chegado a Portugal em 1733, protegido da rainha Habsburgo), ao lado de Gualter da Fonseca e Elios Poppe. Prevalece o traçado ortogonal regular da autoria de Eugénio dos Santos (que morreria prematuramente em 1760), dois polos – o do Rossio e o da futura Praça do Comércio (antigo Terreiro do Paço). Havia que abrir espaços de grande dignidade, que definissem o espírito da cidade. E a zona de desenvolvimento da cidade a norte coincide com o leito da Ribeira de Valverde (a atual Avenida da Liberdade) e o Regueirão dos Anjos (atual avenida Almirante Reis). Por outro lado, o Passeio Público (hoje Restauradores) «oferecia timidamente um contraponto ao sistema racional do pombalismo, como se apresentasse, no quadro do seu Iluminismo, a face da natureza que nele paradoxalmente se integrava, em possível anúncio romântico». Os prédios de rendimento obedecem uma disciplina racional e regular, segundo uma hierarquia no tocante aos requisitos de qualidade, sendo os prédios das três ruas principais ou nobres (que ligam a Praça do Comércio ao Rossio – rua Áurea, rua Augusta e rua da Prata) de maior exigência. A disciplina é, no entanto, rigorosa quanto ao cumprimento de uma certa uniformidade racional. Há castigos severos para quem não cumpra, que podem ir até à expropriação. Há ainda as «casas nobres» que preocupam Manuel da Maia, sendo exemplos, o palácio Castelo Melhor, à entrada do Passeio Público, o palácio do conde de Valadares no Carmo (que viria a ser o Liceu do Carmo), os de Sebastião José, na rua Formosa (hoje Rua de «O Século») e das Janelas Verdes (este vindo de um Távora, condenado em virtude do atentado a D. José), além dos palácios Sobral no Calhariz, Caldas na rua da Madalena e Quintela na rua do Alecrim. Quanto ao ritmo da reconstrução, os testemunhos variam – há quem diga que quando Pombal sai do poder cerca de metade está concretizada, outros falam de um terço…

É a burguesia enriquecida pelos privilégios e monopólios (designadamente as Companhias brasileiras) que mais facilmente vai contribuir para a reconstrução. Note-se que as soluções encontradas são variadas, avultando a Companhia Reedificadora, formada por dois mestres-de-obras que tomam à sua conta a urbanização da encosta que vai da Cotovia a S. Bento. Já a modéstia das novas igrejas paroquiais deve-se à míngua de esmolas, heranças e legados. Alexandre Herculano descendia dos construtores da cidade – nascendo no pátio do Gil, na rua de S. Bento, cujo nome vem do tio-avô materno do historiador, António Rodrigues Gil, mestre carpinteiro. Quanto aos processos técnicos, refira-se o sistema de «gaiola» para prevenção contra os sismos e para garantir flexibilidade na ocorrência de terramotos. Na zona alagadiça da Baixa (no Esteiro do Tejo), adotou-se o sistema de estacaria de pinho verde, seguindo a experiência da cidade de Amesterdão, de modo a estabilizar a organização urbana. O pinho verde não apodrece dentro de água, mantendo-se ao longo dos séculos. Numa abordagem pragmática, sem grandes laivos de genialidade criadora, a reconstrução da cidade deve-se a uma demonstração de eficácia – em ligação com as medidas nos domínios da economia (região demarcada do vinho fino da Real Companhia Velha das Vinhas do Alto Douro, pescarias no Algarve, construção de Vila Real de Santo António), do direito (lei da Boa Razão de 18 de agosto de 1769), da educação (Colégio dos Nobres e reforma da Universidade de Coimbra), das manufaturas (Fábricas das Sedas e dos Pentes em Lisboa, nas Amoreiras; Vidro da Marinha Grande, têxteis na Covilhã), das Companhias (como a de Grão-Pará e Maranhão)… Em suma, «o processo de Reconstrução é, no fim de contas, um processo autónomo, que podia correr, melhor ou pior, com maior urgência ou lentidão, independentemente das crises que se sucediam nos outros setores da ação do futuro marquês de Pombal. A prova está em que, no momento desejado, o ministro pôde pôr (ou impor) um ponto final no discurso, fazendo erigir, numa Praça do Comércio menos de meio terminada, a estátua que glorificava o êxito da empresa». E diz a tradição que as víboras que o cavalo de D. José pisa são suficientes para que os pombos nunca aí poisem. Quando Sebastião José caiu em desgraça, o seu medalhão na frente do monumento foi retirado. Mas voltaria a ser reposto, onde está ainda hoje. Dizia, aliás, o povo de Lisboa poucos anos depois – “Mal por mal, antes Pombal”.

Agostinho de Morais

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