Continuo às voltas com as pilhas de livros da minha biblioteca. Desta vez, despedi-me por um pouco do fantasma de Camilo Castelo Branco, a quem voltarei em breve. Ontem à noite, depois do meu passeio higiénico, vislumbrei numa das esquinas do meu bairro um amigo do velho Calisto Elói. Confesso-vos que quase me esquecera dele. Tem a mesma pose fora de moda e a distração própria de quem há muito não vive neste mundo, mas é um apaixonado da banda desenhada e tornou-se um colecionador frenético de aventuras de Banda Desenhada. Desta vez, fiz por nos desencontramos, mas uma das nossas últimas charlas foi sobre a genealogia de Corto Maltese. Em lugar da recordação medíocre de Calisto, embrenhou-se agora na descoberta das raízes familiares portuguesas do herói de Hugo Pratt. E depois de ler as «Memórias Secretas» de Mário Cláudio (D. Quixote, 2018) entrou na busca sistemática dessa ligação lusitana. Tudo começou quando percebeu que o mundo dos fantasmas de Mário Claúdio constitui um manancial inesgotável. A vida reserva-nos muitas surpresas!… O entusiasmo do meu conhecido é tão sistemático e até doentio que ele vive presentemente num novo mundo de fantasmas – uma plataforma de ironia e pesadelo, como se se tivesse mudado em sonhos para Veneza, com “Casanova, saltando da masmorra para uma coluna, e depois para um telhado, Scarlatti vogando de rosto velado por tules vermelhos, cautério para a sua incurável antropofobia, quem poderá garantir que não resultante da obsessão cultivada pelas ninfetas órfãs, e cantoras de um coro de querubins”. A Sereníssima República dos Doges é um mundo à parte de tudo o que possamos conhecer. Entre Lorde Byron e George Sand, Ruskin e Hemingway, aparece o imprevisível Corto Maltese. Também eu, como Mário Cláudio, conheci tardiamente a personagem, já que só em 1967, na revista “Sgt. Kirk”, Hugo Pratt lhe deu corpo. E tornou-se um notável mito romanesco – nascido a 10 de julho de 1887, filho de Vânia “la Niña de Gibraltar” (de quem Ingres se enamorou) e de um marinheiro da Cornualha. Corto foi dado à luz na ilha de Malta, sede da Soberana Ordem, na descendência de um português célebre, Grão-Mestre da dita Ordem, Frei Manuel Pinto da Fonseca (1681-1773). E deve lembrar-se que foi em sua em honra que a cidade de Qormi, onde se produz o melhor pão da ilha (e quiçá da Europa), se designou como Cittá Pinto, adotando o seu brasão de armas, com cinco crescentes vermelhos, simbolizando os otomanos que o mestre venceu com a própria espada de uma só vez. Os outros três Grão-Mestres da Soberana Ordem de Malta foram: Frei Afonso de Portugal (falecido em 1207), Frei Luís Mendes de Vasconcelos (falecido em 1623) e Frei António Manoel de Vilhena (1663-1736). Pinto da Fonseca fora milagrosamente salvo, depois de uma grave doença, pela sedutora Severiana, mãe da avó Corto, Maria de los Milagros, filha de Pinto da Fonseca. Milagros não teve as glórias que seu pai gostaria que tivesse tido, pois quem sucedeu a Pinto da Fonseca pôs fim a todas as honras. E assim temos a estirpe portuguesa de Corto, que ganhou tal nome pela exiguidade do seu corpo à nascença. Com estes novos elementos, talvez compreendamos melhor o fundo aventureiro, de quem se apaixonara pela obra-prima de Thomas Morus, ou não fosse português Rafael Hitlodeu… E como chegou Corto a Portugal? Pela mão de Dinis Machado e Vasco Granja, em 8 de março de 1975, na revista Tintin. Dir-se-ia que Mário Cláudio legitimou essa opção e completou-a. Hugo Pratt faz desaparecer Corto Maltese durante a guerra de Espanha, mas não foi o fim… Não desapareceu então, como assevera uma carta de Pandora. A 3 de novembro de 1941, dizem as “Memórias Secretas”, apesar da guerra sangrenta, Corto arrendou uma pequena casa na Ilha de Burano, na lagoa de Veneza, no Adriático, onde também moraram Tarao, Pandora, Abel e Sephora. Mas aí temos matéria para mais enigma….
Agostinho de Morais