Tenho estado a folhear o meu velho “Album das Glórias”. Muitas vezes comparo-o com a londrina “Vanity Fair”, que o inspirou. Cada vez gosto mais do nosso… Mas não esqueço as figuras das ilustrações da velha Albion. A rainha Vitória comparava Gladstone a quem a confundia com um comício. Adiante. Prometi-vos que este folhetim seria uma espécie de gabinete de curiosidades. Tem sido, porém, um repositório de recordações de papel. Mas ainda não desisti de outras coisas. Temos caminhado ao sabor dos fantasmas que povoam a minha antiga livraria. Carlos Drummond deu o título, pelas pedras que descobrimos no caminho. Carlos Fradique Mendes lançou-nos ameaças homéricas, por termos desvendado que continua a existir, escondido numa toca qualquer. Justino Antunes, Gervásio Lobato e Tibúrcio Torres descobriram o espírito tonitruante do coronel Segismundo. O Conselheiro Acácio homenageou o génio incompreensivelmente obnubilado que deu pelo nome de Pacheco. E descobrimos que a estatueta que imortalizou Pacheco no Alto de S. João desapareceu misteriosamente, partida em mil pedaços num canteiro de Campo de Ourique. E em Pero Pinheiro apareceu a cabeça dada como perdida. Oh ignomínia! não era mais do que um Zé Povinho risonho e trocista. A verdadeira glória é a dos zombeteiros. E veio à baila o mais genuíno dos políticos. Nem mais do que Joãozinho das Perdizes. E ficou por dizer ou lembrar que, no fim de tudo, ele trouxe os seus apaniguados a votar no Conselheiro Manuel Bernardo, que dava já a eleição como perdida. O bom cacique. Era o ano de 1868, o do romance da Morgadinha, e então rebentou o motim no Porto, a “Janeirinha” – que teve como um dos seus heróis o velho Bispo de Viseu, figura especial. D. António Alves Martins (1808-1882) veio da província até à cidade para moralizar a nação pelo reformismo. Seu lema? «A religião deve ser como o sal na comida: nem muito nem pouco, só o preciso». Foi condenado à morte pelos miguelistas, mas nunca se deixou aprisionar, liderando o partido reformista, o da janeirinha, e chegando a Ministro do Reino. Celebrizou-se por uma afirmação: “Anda qualquer coisa no ar”. Logo houve chacota. Falaria ele de quê? De maus odores ou do rapé? O clérigo incarnava o espírito do morgado das perdizes… E eis-nos num ponto culminante. Zás, aqui nos chega o Senhor Camilo Castelo Branco, de braço dado com Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda. E relata a chegada do deputado da nação vindo do país profundo: «Por fins de janeiro, chegou Benevides de Barbuda a Lisboa, e alugou casa no bairro de Alfama, por lhe terem dito que, naquela porção de Lisboa antiga, a cada esquina havia um monumento à espera de arqueólogo competente. Ao cabo de três dias, Calisto mudou-se para rua mais limpa, supondo que os lamaçais de Alfama tinham tragado os monumentos, lamaçais em que ele desastradamente escorregara, e donde saíra mal limpo, e assoviado por marujos e colarejas, seus vizinhos mais chegados. Mau agouro! A primeira quimera de Calisto, seu tanto ou quanto científica, atascara-se na lama daquela parte de Lisboa, que devia ser a ínclita Ulisseia de Luís de Camões! O deputado, sem embargo de ir habitar o quarto andar de uma casa lavada de ares e muito desafogada na rua da Procissão, quis-lhe parecer que a atmosfera da capital não cheirava bem. Abriu um dos seus livros velhos, intitulado Do Sítio de Lisboa, etc., por Luís Mendes de Vasconcelos, e leu: «…E assim, de todo o território de Lisboa, parece que da terra, fontes e rios respiram suavíssimos vapores, amigos da natureza humana; porque é coisa certíssima que a benignidade dos ares deste sítio não só é por natureza deleitosa, pelo seu temperamento, mas de grandíssimo proveito para algumas doenças, etc…» Calisto Elói fechou o livro, e disse de si para consigo, tomando uma vez de rapé: — O meu clássico não podia mentir. Este mau cheiro é desconcerto da minha membrana pituitária. E alcatroou segunda vez as ventas com uma pitada desinfetante». Mas o tema continuará…
Agostinho de Morais