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IX. Os portugueses e o Renascimento

O pano de fundo da história portuguesa dos séculos XV e XVI pode, em termos culturais, abranger sete referências fundamentais:

(I) na grande tradição da lírica poética, vinda dos trovadores galaico-portugueses e das cantigas de amor e de amigo, chegamos à maturidade da língua portuguesa com Luís de Camões (1524-1580), antecedido por Garcia de Resende (1470-1536), coordenador e artífice do Cancioneiro Geral, acompanhado por Sá de Miranda (1481-1558), o grande introdutor em Portugal da medida nova de Petrarca, ou pelo autor de “Menina e Moça”, Bernardim Ribeiro (1488-1552);

(II) ao lado desde fundo lírico, temos o domínio épico, de que Camões sé supremo representante, ao lado da “História Trágico-Marítima” (obra impressa no século XVIII, a partir de publicações dos séculos XVI) – o que levou Miguel de Unamuno, a considerar a cultura portuguesa, a um tempo, lírica e trágica;

(III) a estes dois campos, junta-se o domínio picaresco, na tradição das cantigas de escárnio e maldizer – a que urge juntar o teatro de Gil Vicente (1465-1536), que António Tabucchi exemplificou com o extraordinário “Prato de Maria Parda” e que podemos acrescentar com o “Auto da Lusitânia” e as impagáveis personagens de Todo o Mundo e Ninguém. Por outro lado, há ainda um dos fundadores da moderna narrativa Fernão Mendes Pinto (c.1510-1583) com a obra fundamental “Peregrinação”;

(IV) as primeiras Gramáticas da Língua Portuguesa datam respetivamente de 1536 com Fernão de Oliveira (também autor da “Ars Nautica”) e de 1540 com João de Barros;

(V) no campo artístico, temos no século XV os exemplos de Nuno Gonçalves (c. 1450-1491) e de Vasco Fernandes (Grão Vasco) (1475-1542) – sendo primeiro autor de uma das obras-primas europeias de sempre, os Painéis ditos de S. Vicente (c. 1470), redescobertos no final do século XIX e identificados pela representação do Infante D. Henrique tal como se encontra na edição da Crónica dos Feitos da Guiné da Biblioteca de Paris;

(VI) na arquitetura, Nicolau de Chanterene (1470-1551), Diogo Boitaca (1460-1528) e João de Castilho (1470-1522) criaram o que conhecemos como o manuelino de que é paradigma o mosteiro dos Jerónimos, além de Francisco de Arruda (m. 1547), que assina a Torre de Belém, merecendo todos especial destaque, ao lado do grande mestre teorizador Francisco de Holanda (1517-1585), não se esquecendo na ourivesaria a preciosidade da Custódia de Belém, possivelmente da autoria de Gil Vicente;

(VII) na música, encontramos figuras de relevância europeia como Mateus de Aranda (1495-1548), Pedro de Escobar (1465-1535), Filipe Magalhães (1571-1652), Manuel Mendes (1547-1605), Pedro Cristo (c.1545-1618) e Duarte Lobo (1565-1646).

Os intercâmbios e a primeira globalização.

Aos domínios referidos, importa acrescentar no que designamos como a primeira globalização as seguintes referências. Na ciência, há a figura maior de Pedro Nunes (1502-1578) matemático e cosmógrafo-mor do reino, de dimensão mundial, mas ainda a de Abraão Zacuto (1450-1522), autor da “Tábuas Astronómicas”; além de Duarte Pacheco Pereira (1460-1533), autor do “Esmeraldo de Situ Orbis” e elemento crucial na preparação e concretização do que veio a ser o Tratado de Tordesilhas; de Garcia de Orta (1501-1568), médico e naturalista; de Amato Lusitano (1511-1568), médico e fisiologista, e de D. João de Castro (1500-1548), político, cartógrafo e naturalista.

Deste modo, até ao reinado de D. Manuel, há uma assinalável convergência de influências, num caleidoscópio de povos e crenças. No entanto, com a expulsão dos judeus, no início do século XVI, depois do massacre de Lisboa de 1506, houve, também uma dispersão e a perda de vantagens económicas e de conhecimento. Pode dizer-se que a saída dos judeus sefarditas da Península Ibérica teve consequências desastrosas no tocante aos investimentos e ao apoio científico – tendo resultado de uma forte pressão diplomática e religiosa, que um século depois o Padre António Vieira procuraria inverter na Restauração da Independência (1640).

A primeira globalização, que Arnold Toynbee designa como era gâmica (por homenagem a Vasco da Gama), abre novos horizontes à língua e à cultura portuguesas nos diversos continentes. A língua franca dos mercadores e missionários da Ásia será o português, designado como “papiar cristão”, enquanto a miscigenação promovida, através dos casamentos mistos, por Afonso de Albuquerque vai permitir o surgimento de um relevante diálogo entre culturas – que Jaime Cortesão considerará como base do humanismo universalista dos portugueses…

Agostinho de Morais

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