A Vida dos Livros

VIDA DOS LIVROS

A mais recente biografia de Eça de Queiroz da autoria de A. Campos Matos (“Eça de Queiroz – Uma Biografia”, Afrontamento, Dezembro de 2009), suscitada por um desafio ao autor para escrever sobre a vida do célebre romancista para leitores de cultura francesa, é um novo instrumento fundamental para quem queira conhecer bem o romancista genial de “Os Maias”.

 VIDA DOS LIVROS
de 1 a 7 de Março de 2010


A mais recente biografia de Eça de Queiroz da autoria de A. Campos Matos (“Eça de Queiroz – Uma Biografia”, Afrontamento, Dezembro de 2009), suscitada por um desafio ao autor para escrever sobre a vida do célebre romancista para leitores de cultura francesa, é um novo instrumento fundamental para quem queira conhecer bem o romancista genial de “Os Maias”.



O DEVER DO ARTISTA
“Constitucionais, socialistas, miguelistas e jacobinos, de resto, para nós romancista, são todos produtos sociais bons para a arte, quando são típicos, todos igualmente explicáveis, todos igualmente interessantes. O dever do artista é estudá-los, como o botânico estuda as plantas, sem se importar que seja a beladona ou a batata, que envenene ou nutre”. Assim se exprimia Eça de Queiroz em 1878, dirigindo-se a Joaquim Araújo (in “Notas Contemporâneas”). A citação serve para ilustrar a preocupação de objectividade do romancista, fiel aos cânones naturalistas que procurava seguir. No entanto, apesar desta posição de princípio, há uma atitude de não neutralidade, em face da sociedade contemporânea. O percurso ideológico queiroziano apresenta continuidades evidentes, mas também uma evolução gradual com rupturas, que não esconde a coerência intrínseca que a “geração” sempre teve, nos vários momentos da sua intervenção, sob a influência marcante do patriarca Antero de Quental. E Carlos Fradique Mendes pôde dar a sua achega sobre esta questão, deste modo: “Em resumo adoro a Vida – de que são igualmente expressões uma rosa e uma chaga, uma constelação e (com horror o confesso) o conselheiro Acácio”.


TEMPERAMENTO CONSPIRADOR
José Maria Eça de Queiroz começa por confessar o seu “temperamento conspirador”, a sua costela socialista, a sua admiração pela Comuna, mas em “As Farpas” afirma: “Detestamos o facho tradicional, o sentimental rebate a sinos; e parece-nos que um tiro é um argumento que penetra o adversário – um tanto de mais!”… No fundo, defendia uma revolução pacífica, “preparada na região das ideias e da ciência”, influenciada por uma “opinião esclarecida”, numa palavra, uma “revolução pelo governo”. Contudo, ao longo das páginas das referidas “Farpas”, encontramos o assumir do que designa como um “panfleto revolucionário”, que punha “a ironia e o espírito ao serviço da justiça”, enquanto causas semelhantes às dos Gracos, de Spartacus, de Moisés ou de Cristo… E, dez anos passados sobre o movimento revolucionário de Paris, dirá: “os vencidos de então são hoje cidadãos formidáveis, armados não de uma espingarda revolucionária, mas de um legal boletim de voto, e que, em lugar de erguer barricadas nas ruas, fazem deputados socialistas nas eleições”. Proudhon, o autor lido e venerado no Cenáculo de S. Pedro de Alcântara, entre a fumarada dos cigarros dos jovens amigos de Antero, continuará bem presente no pensamento inconformista do autor de “A Relíquia”. E não se preocupava ainda o Fradique tardio com a “miséria das classes – por sentir que nestas democracias industriais e materialistas, furiosamente empenhadas na luta pelo pão egoísta, as almas cada dia se tornam mais secas e menos capazes de piedade”? E não disse o próprio Eça, com apenas 22 anos de idade, no “Distrito de Évora” que “as revoluções não são factos que se aplaudam ou que se condenem. Havia nisso o mesmo absurdo que em aplaudir ou condenar as evoluções do Sol. São factos fatais. Têm de vir. De cada vez que vêm é sinal que o homem vai alcançar mais uma liberdade, mais um direito, mais uma felicidade”? O certo é que esta mesma preocupação (pela justiça e pela igualdade) vemo-la projectada, mais tarde, desde o conto “S. Cristóvão” à crónica “Um Inverno em Paris” dos últimos anos, para não falar nos ecos do poderoso ensaio de Antero de Quental sobre as “Tendências gerais da Filosofia na Segunda metade do século XIX” que Eça glosa, aludindo ao “Bem Supremo, fim verdadeiro de toda a vida, fim divino a que tende o Universo. Em resumo, a lei moral do homem é o constante aperfeiçoamento e progressiva santidade”.


O CASO DE GONÇALO
Misteriosamente encontramos em “A Ilustre Casa de Ramires” algo que o brasileiro Álvaro Lins descobre com perspicácia: “mais do que em João da Ega, é em Gonçalo Ramires que Eça pode ser encontrado. João da Ega será uma imagem da sua mocidade, dos seus projectos, das suas ‘blagues’, do seu tipo exterior e convencional – de tudo o que ele seria se tivesse falhado. Mas em Gonçalo, a mais analisada e a mais conhecida das suas personagens, é onde Eça está. Onde estão, pelo menos, alguns dos seus sentimentos mais fortes, da sua maneira de ser, da sua posição em face da vida. E é curioso que Gonçalo, ao contrário de Fradique, sendo Portugal, sendo Eça, sendo o homem-português, permaneça ainda Gonçalo Ramires. Nem o sectarismo, nem o sentimento, nem o patriotismo, em Eça de Queiroz – nada, nem ele mesmo – perturba a criação artística”. Beatriz Berrini falará, por isso, de um “intelectual discrepante”. E nesta discrepância está o curioso paradoxo que leva Eça (e os seus amigos) a serem considerados como “Vencidos”, quando de facto são vencedores (“Victus sed Victor”), quer pela influência decisiva que se estende aos nossos dias, quer pela mensagem, a um tempo crítica e mobilizadora, de recusa terminante de derrotismo ou desistência, já que eles, de facto, não baixaram os braços. E a contradição de Gonçalo é claríssima, sabendo que a História, mais do que um motivo de orgulho retrospectivo torna-se demonstração de que a responsabilidade fica do lado da acção… Basta, aliás, ler Antero em “A Província” no texto “Expiação”, na sequência do Ultimatum inglês: “o nosso maior inimigo não é o inglês, somos nós mesmos. Só um falso patriotismo, falso e criminosamente vaidoso, pode afirmar o contrário. Declamar contra a Inglaterra é fácil: emendarmos os defeitos gravíssimos da nossa vida nacional será mais difícil, mas só essa desforra será honrosa, só ela salvadora. Portugal ou se reformará política, intelectual e moralmente ou deixará de existir”. Se dúvidas houver, aqui está uma atitude positiva, não fatalista, motivadora, virada para diante.


SOMBRA OMNIPRESENTE
Há muito que conhecemos todo o trabalho do Arquitecto A. Campos Matos de muitas décadas a fazer o inventário exaustivo de tudo o que diz respeito a Eça. Quando publicou as “Sete Biografias de E.Q.” fez uma apreciação a propósito desses diferentes registos e leituras da vida do romancista. Afinal, nos dias de hoje, a sombra de Eça de Queiroz sobre o nosso tempo define-se, em bom rigor, a partir de diferentes perspectivas, que podemos encontrar, em parte, nestas biografias. Miguel Melo (1911), António Cabral (1945), Viana Moog (1945), João Gaspar Simões (1945 / 1980), Luís Viana Filho (1983), José Calvet de Magalhães (2000) e Maria Filomena Mónica (2001) representam as diversas leituras possíveis. E, afinal, temos de recordar (com o exaustivo autor da obra hoje referenciada) a afirmação de Virgínia Woolf: “um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma vaga de discursos críticos sobre si, mas que continuamente se livra deles”. É a vida própria das obras clássicas que tem de ser lembrada, e, no caso de E Q., a relação indissociável entre a obra e o autor é particularmente importante, uma vez que há uma intenção transformadora da sociedade (como foi defendido na conferência do Casino Lisbonense) no acto de escrever. A biografia de A. Campos Matos é um repositório rigoroso e exaustivo, constitui um trabalho de minúcia e beneditino, de longa data. Como o próprio tem afirmado, não se trata, porém, de substituir obras anteriores da mesma temática, mas sim de arrumar ideias e elementos, tantas vezes perdidos ou esquecidos entre considerações subjectivas ou momentâneas. Nesse sentido é um bom serviço prestado à cultura portuguesa, que completa ou sistematiza elementos já constantes noutras obras do autor (fotobiografia, epistolografia, dicionário). Permito-me salientar a inclusão da cronologia geral da vida e obra (da maior utilidade), a referência especial à amizade fraterna com Oliveira Martins e à influência exercida pelo “Portugal Contemporâneo”, a análise das controversas relações com Ramalho Ortigão e Jaime Batalha Reis, das polémicas com o inefável opositor Manuel Pinheiro Chagas, do confronto com Camilo Castelo Branco, da presença de Eduardo Prado (com o delicioso episódio dos empenho do brasileiro para que Eça vá para o Rio, contra a sua vontade – “Safa, que Prado! E ainda por cima tive de te mandar um telegrama que me custou mais de dois francos. Foi por quanto me ficou essa legação”, com dirá a Bernardo Pindela), isto além do encontro com António Nobre, excelente oportunidade para termos um curioso retrato do escritor fora do círculo dos mais próximos… A biografia agora disponível merece ser uma segura obra de referência, para ter sempre à mão quando se tratar de Eça de Queiroz e da sua geração – o que é já muitíssimo.


Guilherme d’Oliveira Martins



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