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(VI) A Carta do Infante das Sete Partidas

Sophia de Mello Breyner escreveu em 1961 o poema “Pranto pelo Infante Dom Pedro das Sete Partidas”, que resume bem o cerne de um contributo essencial para a construção do imaginário nacional. “Nunca choraremos bastante nem com pranto / Assaz amargo e forte / Aquele que fundou glória e grandeza / E recebeu em paga insulto e morte”. De facto, se há figura que ainda hoje obriga a uma reflexão sobre a nossa memória é o Infante D. Pedro (1392-1449), filho de D. João I e D. Filipa de Lencastre, pelo contributo que deu ao advogar a necessidade de reflexão e ação planeada para responder aos desafios do tempo. Entre 1425 e 1428 viajou na Europa, pelos grandes centros – Londres, Bruges, Veneza, Roma, Alemanha, Hungria e Espanha. O contacto internacional permitiu-lhe dispor de informação atualizada, designadamente em relação às relações económicas com a Flandres. Comparando a experiência portuguesa e os dados de fora, escreveu ao irmão D. Duarte, futuro monarca, uma importante carta – a carta de Bruges (1426) – em que aponta um conjunto essencial de reformas. Em Veneza, o mais importante centro económico do século XV, visitou arsenais, recolheu informes sobre o comércio oriental, adquiriu o livro de Marco Pólo, com notícias da Rota da Seda, da China, das Índias e das suas riquezas, e, tudo leva a crer, também um mapa com o traçado das principais rotas comerciais com o Oriente.

Tendo sido Regente do Reino na menoridade de D. Afonso V, até 1446, foi importante a sua ação. O rei ainda pediria o apoio do tio para a sua governação, mas a grande nobreza, como o duque de Bragança ou o conde de Ourém, rodearam o novo monarca, no sentido de afastar a influência de D. Pedro. Perante o clima de tensão criado pelos inimigos, retirou-se da corte e foi para o seu ducado de Coimbra. Mas os adversários acusaram-no de diversos crimes. E D. Afonso V, em 1449, ordenou a D. Pedro que entregasse as armas guardadas na cidade de Coimbra e que deixasse passar nas suas terras as tropas do duque de Bragança. D. Pedro recusou e por razões nunca esclarecidas dirigiu-se com o seu exército para Lisboa, até Alfarrobeira, onde o exército real o esperava. Ainda hoje não se consegue interpretar este ato nem os seus motivos, já que o infante sabia que o rei discordava dele e um exército desproporcionado o esperava. Contudo, segundo o conde de Avranches, mais valeria «morrer grande e honrado do que viver pequeno e desonrado»… A batalha de Alfarrobeira é dos episódios mais dramáticos da nossa história. Ocorreu a 20 de maio de 1449, morrendo D. Pedro com as suas tropas destroçadas. Apenas em 1455, graças designadamente à intervenção de D. Isabel de Borgonha, irmã do infante, foi autorizada a sua sepultura no mosteiro da Batalha. E só com a subida ao trono de D. João II, em 1481, a memória de D. Pedro pôde ser reabilitada.

A célebre Carta de Bruges é notável pelo sentido modernizador e pela atitude reformista, aconselhando a presença de representantes dos três estados (clero, nobreza e povo) no Conselho e Tribunal reais: «Senhor, bem sabeis quanto presta o bom conselho que é tido e ouvido em boa ordenança; por isso me parece, Senhor, que todos vossos feitos assim… deviam ser determinados; e assim, Senhor, neste Conselho como na vossa Relação, me parece que deveis ter homens de todos os estados da vossa terra, assim cleresia, como de fidalgos e do povo, para vos aconselharem que não ordenásseis coisa contra seus proveitos nem em quebranto de seus bons privilégios.». Importaria ainda reformar a Universidade, como meio para garantir uma melhor qualidade dos quadros eclesiásticos e administrativos: «que na dita universidade houvesse dez ou mais colégios em que fossem mantidos escolares pobres; e outros ricos vivessem dentro com eles às suas próprias despesas (…) e se ordenassem estes colégios por maneira dos de Uxónia (Oxford) e Paris, e assim cresceriam os letrados e as ciências, e os senhores achariam de onde tomassem capelães honestos e entendidos… e além disto se seguiria que Vós acharíeis letrados para oficiais de Justiça; e quando alguns vos desprouvessem teríeis donde tomar outros e eles, temendo-se do que poderia acontecer, serviriam melhor e com mais diligência (…)»

“Parece-me, Senhor, que a justiça tem duas partes. Uma é dar a cada um o que é seu. A outra é dar-lho sem delonga. E ainda que eu cuido que ambas em vossa terra igualmente falecem, da derradeira sou bem certo e esta faz tão grande dano em vossa terra que, em muitos feitos, aqueles que tarde vencem ficam vencidos”. A Carta é, assim, um repositório de conselhos e constitui um verdadeiro “programa de ação”. E tem sido muito lembrada como sinal de exigência de ligar “fixação” e “transporte”, ou seja, de criar condições para produzir riqueza em ligação com o desenvolvimento do trato comercial. E a mesma preocupação se encontra no tocante à aplicação dos meios disponíveis: “bem creio, Senhor, que seis que tivessem vontade de desembargar e fossem diligentes em seu ofício fariam mais que cinquenta que tal vontade não têm”. Quanto aos gastos dos senhores da terra, estes fazem “tão grandes despesas que a terra o não pode suportar; e por isto se lançam preitas e outras imposições per que ela é muito gastada”. E ainda por cima, “a terra e todolos fidalgos dela” eram mal servidos, porque prevalecia a ociosidade e “nenhum se contenta de aprender o ofício que seu padre havia, nem servir outros senhores senão lançarem-se à corte em esperança de serem escudeiros del-rei, ou vossos ou de cada um de vossos irmãos”. E assim o duque de Coimbra apontava os principais males da sociedade portuguesa, que eram, entre outros: esquecer o essencial em favor do acessório, desprezar o valor do trabalho e da organização continuados e menosprezar a celeridade na administração da justiça.

GOM

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