Falo-vos de uma mulher excecional. Na rua da Cedofeita, na cidade do Porto, a casa dos Vasconcelos era um centro onde se reuniam os mais influentes intelectuais do seu tempo, empenhados na vida cívica e no lançamento das bases de um progresso baseado na cultura e na liberdade. A primeira mulher catedrática na Universidade portuguesa nasceu alemã. Veio para Portugal por casamento com um dos grandes intelectuais do século XIX, Joaquim de Vasconcelos, estudioso sobre musicologia, biografia, pintura portuguesa nos séculos XV e XVI, sobre os contactos portugueses com os grandes artistas europeus como Albrecht Dürer, Rafael e Van Eyck, sobre história da ourivesaria, joalharia e cerâmica portuguesas, além da bibliografia crítica da história da literatura portuguesa, sobre Francisco de Holanda, Damião de Góis, Nicolau Clenardo e Duarte Ribeiro de Macedo. No final da década de setenta, Joaquim de Vasconcelos empenhou-se na feitura da Reforma geral do Ensino das Belas-Artes em Portugal (1877-1880). Foi um dos organizadores do Museu Industrial e Comercial do Porto. Enquanto Carolina estudava a evolução da língua, Joaquim de Vasconcelos debruçava-se sobre as raízes flamengas da pintura portuguesa no século de ouro. Tudo estava em saber sobre o melhor modo de interpretar e de chegar à identidade do ser português. Joaquim de Vasconcelos foi dos primeiros a pronunciar-se sobre os painéis ditos de S. Vicente, atribuídos a Nuno Gonçalves, em artigos publicados no “Comércio do Porto” (junho de 1895). A representação do Infante D. Henrique na “Crónica dos Feitos da Guiné” de Zurara pertencente à Biblioteca Nacional de Paris permitiu-lhe fazer as primeiras identificações relativamente aos painéis, a começar pela presumível data da sua feitura.
O conhecimento da realidade portuguesa por Carolina Michaëlis enche de espanto os seus leitores. Sendo mulher afirma, com grande sensibilidade, sobriedade, o espírito científico e a exigência a importância da educação e do conhecimento. Torna-se em 1877 sócia do Instituto de Línguas Vivas de Berlim. E é impressionante a lista dos trabalhos que publica – primeiro em matéria linguística, depois no âmbito da história e da crítica literárias. Lembremos os estudos sobre o “Cancioneiro da Ajuda” e o glossário imprescindível que preparou, com enorme cuidado. A literatura portuguesa é um inesgotável campo para a sua investigação no tocante às origens da poesia peninsular. A Universidade de Friburgo reconhece o labor científico de primeira qualidade de Carolina Michaëlis de Vasconcelos e concede-lhe o grau de Doutor honoris causa. O que a jovem não conseguira em Berlim conseguia-o agora, por via honorífica, mas com indiscutível sentido de justiça. O reconhecimento nacional e internacional de Joaquim de Vasconcelos também é notável: é sócio efetivo da Gesellschaft für Musikforschung de Berlim, da Real Associação dos Arquitetos Civis e Arqueólogos Portugueses (Lisboa), sócio correspondente do Instituto Imperial Germânico de Arqueologia, sócio honorário da Academia Real de Música de Florença, sócio honorário da Sociedade Martins Sarmento (Guimarães) e sócio benemérito da Associação Industrial Portuguesa.
Em 1901, D. Carlos concede a Carolina Michaëlis o grau de oficial da Ordem de Santiago da Espada, como preito de homenagem ao labor científico, que todos continuavam a considerar como de qualidade e interesse excecionais. Em 1911, logo após a implantação da República, Carolina é nomeada professora da nova Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em reconhecimento dos enormes serviços prestados à cultura portuguesa, lugar que não aceitará por motivos da vida familiar. No entanto, aceita o encargo pedagógico e científico, exercendo-o na Universidade de Coimbra. Aí, recebe, em 1916, o grau de doutora honoris causa, em ato solene de homenagem à sua obra, tão rica e relevante. Em 1923 é-lhe outorgada idêntica honra na Universidade de Hamburgo.
Mulher e investigadora, cultora da sensibilidade e do rigor – a sua vida demonstra a importância da íntima ligação entre a opção pessoal e a vocação científica. Considera que a Saudade é um “traço distintivo da melancólica psique portuguesa e das suas manifestações musicais e líricas, muito mais do que a Sehnsucht é característica da alma germânica. Refletida, filosófica, acatadora do imperativo categórico da Razão pura, ou hoje, do imperativo energético da atividade ponderada”, a palavra alemã “tem muito maior força de resistência contra sentimentalismos deletérios”. “A saudade e o morrer de amor (outra face do mesmo prisma de terna afetividade e da mesma resignação apaixonada)” são realmente, para a estudiosa, “as sensações que vibram nas melhores obras da literatura portuguesa, naquelas que lhe dão nome e renome. Elas perfumam o meigo livro de Bernardim Ribeiro e os livros que estilisticamente derivam dele, como a ‘Consolação de Israel’ de Samuel Usque, e as’ Saudades da Terra’ de Gaspar Frutuoso. Perfumam as Rimas de Camões e os Episódios e as Prosopopeias dos Lusíadas. —Perfumam as Cartas da Religiosa Portuguesa; e as criações mais humanas de Almeida Garrett, a Joaninha dos olhos verdes e as figuras todas de Frei Luís de Sousa. Não faltam no Cancioneiro do povo; nem já faltavam, na sua fase arcaica, nos reflexos cultos da musa popular que possuímos, isto é, nos cantares de amor e de amigo dos trovadores galego-portugueses, no período que se prolongou até os dias de Pedro e Inês. Logo no alvorecer da poesia, ainda antes de 1200, surgem naturalmente lindos lamentos de amor e de ausência. Encontro-os naquela singela composição, em que o rei D. Sancho o Velho desdobra o sentimento da saudade nas suas duas componentes principais: cuidado e desejo.
Se lermos a obra de Carolina Michaëlis e de Joaquim de Vasconcelos, muito rica, diversificada e inovadora, facilmente encontramos uma procura incansável da identidade portuguesa, pelo espírito singular da nossa cultura – demonstrando que essa cultura sempre se enriqueceu quando se abriu ao exterior e a outras culturas e sempre se empobreceu quando se fechou ou se deixou ficar pela inércia conservadora. Cultivaram, assim, ambos um espírito desperto e liberal, aberto e sensível, em busca do que ia para além do superficial e do imediato. Vendo a mestra com olhos de hoje, não passa despercebida uma intenção claramente emancipadora, de quem nunca deixou de assumir a sua qualidade de mulher e de quem considerou sempre, como naturalíssimo, que liberdade e igualdade fossem faces do mesmo espelho, como a igualdade e a diferença, e nunca realidades antagónicas. Mas para que tal acontecesse é preciso enaltecer a atitude de Joaquim de Vasconcelos, grande admirador de sua mulher, que com ela formou um par de características excecionais, pela sua complementaridade e pelo exemplo. Carolina Michaelis fez até morrer aquilo de que gostava e que era a sua vocação – o estudo incansável sobre a cultura portuguesa, as suas raízes e especificidades, sem esquecer que era um exemplo singular, que sempre desejou que deixasse de ser excecional. Como disse Gerhard Moldenhauer na oração fúnebre: “Quem, para mais conscientemente se orgulhar de ser português, alguma vez se interessou pela nossa herança espiritual, encontrou sempre no excecional espírito de Carolina Michaëlis o mais amável dos mestres e o mais seguro dos guias”.