A Vida dos Livros

“Uma Viagem das Arábias” de Leonor Xavier

Um fantástico relato de uma viagem sentida e vivida pela nossa querida e saudosa amiga. (Clube do Autor, 2011)

A VIDA É UM MILAGRE
Leonor Xavier dizia: “a vida é um milagre, que procuro aproveitar, mas o forte é a minha relação de pasmo, de um imenso espanto e de gratificação” Era assim a Leonor. Um encontro em que estivesse era sempre uma oportunidade de alegria e de recordação. Tinha um especial talento para a generosidade e para fazer amigos. E gostava de lembrar a afirmação de Agustina Bessa-Luís: “a formosura do mundo é meu tesouro, pois dela faço torres de pensamento. E a grandeza do mundo não me tolhe, porque maior que tudo é a realidade de um coração que ama e sente”. Julgo que está aqui bem expresso aquilo em que sinceramente acreditava. Conhecia-a ainda antes de Direito, nas disciplinas económicas que me interessaram. Quando reencontrei Leonor foi no seu regresso do Brasil, em 1987, havia amigos comuns, trabalhos em conjunto, um grande entusiasmo – Helena e Alberto Vaz da Silva, António Alçada Baptista, Graça Morais, Raul Solnado, Agostinho da Silva, Ana Vicente, Eduardo Prado Coelho, Teresa Belo e mais recentemente José Tolentino Mendonça – o jornalismo cultural, a literatura, as artes, a poesia, as iniciativas do Centro Nacional de Cultura. Lembro-me de um tempo em que vinha à baila a palavra “escreviver”, na expressão de David Mourão-Ferreira. E Leonor tantas vezes repetia que assim se sentia, a saborear os acontecimentos da vida e o prazer de animar mil conversas, em tertúlias de geometria variável que eram sempre um motivo de novos temas e encontros… Era um tempo em que procurávamos que a afirmação de Emmanuel Mounier “o acontecimento é o nosso mestre interior” se tornasse uma verdadeira realidade. E o exemplo de Tristão de Athaíde ou Alceu Amoroso Lima teve a maior importância. Nessas amizades, “conversar com o António Alçada, segundo Leonor, era um exercício de alegria, pelo improviso, pelo encadeamento de fábulas e de histórias. Podia dizer que os portugueses dramatizam o calor do verão e o frio do inverno. Ou que os portugueses têm vergonha de ser felizes e os brasileiros têm vergonha de ser infelizes”.

TUDO O QUE ERA PORTUGUÊS…
Tudo o que era português entusiasmava-a, mas sempre com o sentido crítico, de exigir que não fizéssemos má figura. Mas a noção de ser português para Leonor era muito ampla. Lia o “Chiquinho” do Baltazar Lopes com genuína emoção, como coisa sua. Emocionava-se com essa obra que deve ser de leitura obrigatória para qualquer amante da língua portuguesa e dos nossos crioulos. Deleitava-se a recordar: “Depois deitávamo-nos de barriga para o ar, namorando o céu carregado de estrelas. Ao fundo o mar fazia um ronco de meter medo. As constelações eram rebanhos pastando, dávamos nomes de vacas conhecidas às estrelas mais brilhantes. Detrás das estrelas, Nossenhor era um velho pastor vigilante do seu gado (…) Ficávamos parados, possuídos de um respeito religioso pelos mistérios com que a monte envolvia nossos corações meninos”. Também amava profundamente o Brasil. Um dia, em Itabira, quando fomos homenagear Carlos Drummond de Andrade na velha casa de família, ele que dizia que a sua casa era uma casa portuguesa, a simpática guia que nos acompanhava emudeceu ao compreender que nada podia explicar, pois Leonor sabia tudo sobre o grande poeta. E em Minas Gerais, em Ouro Preto e em Congonhas, com ela, sentimos que estávamos em casa, ao ouvir: “Aleijadinho sua alma voou / encantada / porque as pessoas não morrem diz joão guimarães rosa / Ele está no outro lado da morte sem cor de candinho portinari / o pintor do menino balanço de gangorra feito anjo no ar / Em Ouro Preto posso ouvir as vozes mineiras / de Itabira de Drummond / e Conceição de Mato Dentro de josé aparecido / e também o Rio de millôr / dos que amei eu guardo as vozes”. Entre rir e pensar, numa conversa à mesa, onde se diz que não se envelhece, porque a palavra puxa a palavra, um dia Nélida Pinõn disse. “a morte é simplesmente deixar a sopa esfriar na mesa, cruzar a porta do jardim sem olhar para trás ao menos para dizer adeus a quem fica e tomar um caminho que não sabe para aonde o leva e do qual nunca mais se retorna”. Leonor achava que essa era uma boa definição de um caminho possível que aceitasse os maiores mistérios. E por um momento pegava no tema para o ligar à vida, à memória, às lembranças. Quando lemos “Casas Contadas”, percebemos que descreve uma extraordinária trajetória de vida, através do ambiente das 13 casas que habitou desde a infância. Acompanhamo-la passo a passo, para descobrir em cada recordação um motivo de vida e de compreensão das pessoas, das pequenas e grandes diferenças. E o último livro que escreveu ainda nos reserva surpresas, que esperamos ansiosamente, com o título “Adolescência”.  Leonor deixou-nos, assim, não só a memória do que fica, mas também o lado peregrino, que busca permanentemente os outros. A distância atraía-a como modo de tomar consciência dos limites. Demos a volta ao mundo e essas viagens ficaram memoráveis. Releio “Uma Viagem das Arábias” e não posso deixar de reviver essas aventuras, no Golfo Pérsico, Sultanato do Oman, Jordânia, Petra, Emiratos Árabes (onde encontrámos a lembrança do piloto árabe de Vasco da Gama) até à magia do Cairo…

DOS QUE AMEI GUARDO AS VOZES
Havia sempre com Leonor Xavier uma inesgotável capacidade de olhar e de nos fazer compreender melhor os segredos e enigmas da vida. Em cada viagem revelava-se a ideia de nos procurarmos no divertimento e no lado alegre da vida, os “Disparates do Mundo” de Chesterton. Quando li o “Livro de receitas dos Lugares imaginários” de Alberto Manguel imaginei-a a cozinhar Salada de Sol, Camarão Nautilus à moda do Capitão Nemo ou Pedaços de Imortalidade. E não precisei de fazer um esforço especial, uma vez que ela nos ensinou em vários dos seus livros receitas deliciosas e modos diversos de definir personalidades diferentes. Assim podia saborear a existência em todas as suas qualidades. Portugal e Brasil existiam juntos em Leonor. Tantas vezes o seu inconfundível pronunciar da nossa língua comum pressupunha essa preocupação de se fazer entender dos dois lados do Oceano. “A cultura comum permanece nos traços do património histórico, nos gestos de cortesia, na intimidade das famílias tradicionais. E liga-nos a língua portuguesa, sagrada união de facto. Mas sendo no discurso oficial designados países irmãos, Portugal e Brasil são irmãos separados à nascença. Separados de facto, porque não cresceram juntos, não têm os mesmos códigos, nem verdadeira cumplicidade. São diferentes no entendimento do mundo, nos rituais da vida e da morte, no traçado da condição humana. Temos tanto a aprender uns com os outros, portugueses e brasileiros, sobre o que nos aproxima e nos separa”. E assim Alberto Costa e Silva deixou claro, numa conversa que teve com Leonor Xavier, que “uma política da língua interessa a todos os países onde se fala o português, porque ele fortalece a nossa presença no mundo. Nós seremos nos séculos vindouros aquilo que for a nossa língua”. E assim continuaremos a encontrar-nos. Ainda há muito mundo para viajar.

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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