BIBLIOTECA VIRTUOSA
“Uma biblioteca antes de o leitor exercer uma escolha é como o caldo primordial de átomos do qual toda a vida emergiu. Está tudo ao alcance de uma pergunta: cada ideia, cada metáfora, cada história, a identidade de cada leitor individual. As escolhas que faço numa biblioteca, a seleção de livros que mais prezo, denunciam não só a minha visão do Paraíso, mas também a minha identidade. A verdade é que sempre senti que a minha experiência do quotidiano, assim como uma certa compreensão dessa experiência, me chega através das minhas leituras. Em criança aprendi sobre o amor lendo histórias d’As Mil e Uma Noites, sobre a morte com os policiais, sobre o mar com Stevenson, sobre a selva com Kipling, sobre a possibilidade de aventuras extraordinárias com Júlio Verne. A experiência tangível chegou, na maioria dos casos, muito mais tarde, mas quando chegou eu tinha palavras para a nomear”. Alberto Manguel recorda-nos, assim, algo que é familiar para quem gosta de livros e de bibliotecas. As coisas passam-se normalmente desta maneira. Começa-se a amar os livros como objetos. Entusiasmamo-nos com as suas capas, com as suas encadernações, depois chegamos às imagens que os ilustram e à curiosidade de perceber o que significam, nesse sentido os Dicionários e as Enciclopédias ilustradas constituem lugares extraordinários, porque as ilustrações e os sentidos estão por definição próximos, em seguida entusiasmamo-nos pelas capitulares, até às narrativas e ao seu fantástico desenvolvimento. Não por acaso, as capitulares ricamente decoradas enchiam os mais antigos códices e a última edição do livro de Manguel tem na capa uma capitular, um L, como não poderia deixar de ser… A paixão da leitura constitui um processo complexo, como acontece na História da Humanidade, tudo começa pela oralidade, ainda antes de nascermos, quando ouvimos a voz da nossa mãe, primeiro conversando connosco ou entoando uma melodia, depois contando uma história muito simples, sobre o tempo em que os animais falavam, e a pouco e pouco vamos entendendo o mundo através dessa voz, dessas narrativas, desses poemas. Para mim, os livros de ilustrações não foram o princípio, mas depressa entendi a sua extraordinária importância e por ainda hoje me deixo fascinar pelas histórias de quadradinhos. Se comecei a amar os livros como objetos, foi porque nasci rodeado de livros muito sérios, enchendo paredes até ao teto, que fui descobrindo como caixas de surpresas muito ordenadas… Era muito difícil chegar as livros mais altos, mas felizmente o que se designa como obras de referência estão sempre à mão, que o mesmo é dizer nas prateleiras de baixo.
VINTE ANOS DEPOIS
Alberto Manguel regressou a este seu livro vinte anos depois (como o tempo que Alexandre Dumas escolheu para reencontrar os mosqueteiros), e sentimos que a atualidade está plenamente viva. E lembra-nos o tempo em que pôde ser leitor para alguém que estava a perder a visão, como Jorge Luís Borges, e esses diálogos são demonstrações de como a leitura é a descoberta do mundo. Umberto Eco disse, por isso, que podemos viver pelo menos cinco mil anos, lendo, porque esse é o tempo da história da nossa civilização… Essa é a demonstração de como ler é cumprir o que Quevedo afirmou, fazendo da memória algo presente – como algo de sublime. Desde a sabedoria de Salomão até aos contos de Borges, estamos, afinal, a antecipar o encontro com Dante na antecâmara do Paraíso. No fundo, aprender a ler é entrar plenamente no mundo da vida. “A criança que aprende a ler é admitida na memória comum por via dos livros e descobre, assim, um passado partilhado que ele ou ela renova, em maior ou menor grau, a cada leitura». Lembro bem o momento em que minha mãe me ajudou a decifrar as primeiras páginas da “Cartilha Maternal” – e não esqueço os tempos exaltantes em que ajudei os meus filhos e os meus netos na aprendizagem fundamental da leitura. E só um poeta talentoso como João de Deus poderia ter criado um sistema tão atraente, eficaz e duradouro… É certo que todos os métodos são bons desde que os seus resultados sejam positivos, mas ficamos para sempre ligados ao que seguimos. Afonso X, o Sábio, escritor maior da nossa língua, disse um dia: “Bem e lealmente devem os professores mostrar o seu saber aos discípulos, lendo-lhes livros e fazendo-os compreendê-los o melhor que forem capazes…” E acrescentava o carácter insubstituível dessa relação, pessoal e íntima. “Uma História da Leitura” é um percurso multifacetado com mil circunstâncias e exemplos sobre o prazer da leitura. E se digo prazer é porque essa relação tem de ser cultivada. Não escolhi nascer na biblioteca de meu avô, professor de profissão entre outros ofícios. Concedo que tive condições especiais para essa paixão.
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença