UM LIVRO POR SEMANA
De 19 a 25 de Março de 2007
“D. Pedro V” da autoria de Maria Filomena Mónica (Círculo de Leitores, 2005) é um retrato sugestivo e estimulante de quem Ruben A. disse ter sido “o primeiro homem moderno que houve em Portugal”. O jovem rei (1837-1861) praticamente não teve tempo para exercer o seu magistério (1855-1861), e no entanto teve um dos mais interessantes e fecundos reinados, pela maturidade e inteligência invulgares de que deu provas. “Lindo, fúnebre e solitário, D. Pedro V foi um cometa que iluminou a dinastia dos Braganças” – assim começa a autora, anunciando, logo, o que a biografia vai revelar e demonstrar. E, ao longo da obra, vamos assistir à construção de uma personagem fascinante, através de inúmeras provas. E vê-se que o espírito crítico da investigadora exigiu muito mais demonstrações e provas sobre as virtudes do que à partida pareceria necessário. E porquê? Uma vez que desconfiou das hagiografias que se multiplicaram após a morte prematura do rei. “A minha visão de D. Pedro mudou ao longo do tempo (diz a autora), mas isto aconteceu – o que é estranho – de uma forma não linear. Não passei, de um dia para o outro, da tese de D. Pedro ser um monarca petulante, pérfido e funesto para a concepção de que, pelo contrário, fora um rei trágico, romântico e honesto”. A cada passo, assaltavam as duas visões sobre o rei, ora a de um santo ora a de um Satanás. Numa palavra, estamos perante uma personalidade que não nos deixa indiferentes – mesmo que à distância. E, no fundo, é a distância que torna as coisas mais difíceis, uma vez que o tempo apaga muitas vezes as marcas da inovação e da capacidade antecipadora, outrora evidentes. E, mais do que tudo, o jovem D. Pedro V teve o toque raro de ver o futuro para além do “véu da ignorância”, tendo Eça dito dele: “como deve ser infeliz um rei inteligente, quando, caindo em cepticismo e misantropia, pela certeza que adquiriu de que está no meio de uma velha política e de uma torpe intriga, não pode todavia entregar a nação à experiência republicana, nem chamar a si o poder absoluto ou pessoal! Um tal rei (…) termina sempre por morrer cedo”. Reformador, acreditava no progresso e no poder da civilização e da abertura de espírito. Leiam-se as considerações sobre a Instrução Pública, reproduzidas em anexo ao livro, e veja-se como o rei considerava a educação como uma “necessidade moral e política”, em contraste com as objecções a que alude, e que refuta, que vemos regressar ciclicamente da parte dos fatalistas e dos defensores da mediocridade. Afinal, o rei o que combateu sempre foram exactamente essa mediocridade e essa irrelevância que lhe está subjacente. “A sua ambição era montar uma vasta rede de escolas públicas, o primeiro passo, na sua opinião, para o desenvolvimento económico do país” (p. 206). Mas, além da modernização económica, preocupava-o a moralização da vida pública e a reforma do sistema representativo. Execrava o caciquismo e os seus tiques manipuladores, por isso inspirou a lei de 1859, que procurava, de facto, melhorar as coisas. No entanto, “excepto D. Pedro V, ninguém pensava que as regras do liberalismo fossem para ser aplicadas à letra”. O rei era uma pessoa exigente, com um pensamento complexo, lido, culto, inteligente, sabia ouvir e sabia concluir por si, para além do que lhe diziam os conselheiros da corte. Influenciado por um tio que vivia longe, num reino “civilizado” (o Príncipe Alberto, marido da rainha Vitória), desprezando a ignorância e mesquinhez que o rodeava, talvez não se tenha apercebido plenamente de que o seu reino, apesar de tudo, começava a entrar no progresso, em parte graças aos engenheiros da Regeneração e ao sr. Fontes. E o certo é que em pano de fundo assiste-se a essa subtil mas intensa transformação. “A imagem que dele ficou para a história é a de um rei simples, bom e honesto, uma interpretação que não faz justiça à complexidade do seu carácter. Simples, o rei nunca o foi; bom, talvez; honesto, certamente. Mas outras características possuía, como a inteligência, a cultura e a energia, que têm sido pouco salientadas” (p. 209). Tinha, no entanto, do seu poder moderador, que decorria da Carta Constitucional, uma visão intervencionista. A ideia de Thiers, segundo a qual o rei reina, mas não governa, não era por si compreendida. Achou, por isso, sempre que recaía sobre si a responsabilidade especial de transformar Portugal numa nação civilizada. E essa interpretação obrigava-o a interessar-se pelos negócios públicos e pelas vias reformadoras. É certo que desprezava muitos dos que governavam (por serem indolentes, indigestos discursadores, cabeças vazias, vaidades e fatuidades), mas isso servia para reforçar ainda mais o sentido providencial da sua acção moralizadora. Não tolerava as cunhas e os favores, acreditava na disciplina e no rigor, desejava sobriedade e sentido de serviço. Tinha um fascínio pela vida cultural. Fundou o curso superior de Letras. Foi de certo modo discípulo de Herculano, como seu pai fora um dilecto protector do historiador, apesar de as relações entre ambos terem esfriado bastante com o tempo. Visitou Camilo na Cadeia da Relação do Porto, por duas vezes, e sente-se que a admiração pelo genial homem de letras sobrepôs-se a tudo o mais: “Estimarei que se livre cedo!” A vida é acompanhada a par e passo, num período conturbado e conflituoso. E a maturidade do jovem afirma-se nesse panorama. Marcado por uma estrela funesta? Figura trágica? Ungido por uma aura de santidade? Como personalidade rica, foi contraditório. “Era severo e gentil; modesto e sarcástico; tinha carências afectivas e era de uma frieza que podia ferir. Para o bem e para o mal, D. Pedro, o Esperançoso, não teve tempo de mostrar aquilo de que era capaz”…
Guilherme d’Oliveira Martins