UM LIVRO POR SEMANA
De 17 a 23 de Setembro de 2007.
“A Vida Quotidiana no Paraguai no tempo dos Jesuítas”, de Maxime Haubert (Livros do Brasil, s.d.) esteve nas mãos dos viajantes que há uma semana terminaram a peregrinação “Os Portugueses ao Encontro da sua História”, desta vez na América do Sul, nas “reduções” dos jesuítas, nos caminhos dos bandeirantes e na interrogação das raízes dos índios guaranis. A Província do Paraguai de que nos fala o livro foi fundada em 1604, por cisão da do Peru, e não corresponde ao actual Estado que leva esse nome, mas a um território muito mais vasto, na zona de influência espanhola, abrangendo Argentina, Uruguai, Rio Grande do Sul, Bolívia Oriental e parte do Chile, além do actual Paraguai. Os padres jesuítas iniciaram aí, no século XVII, a implantação de “reduções” (no sentido de povoações confinadas, destinadas à “reorientação” dos índios). Tratou-se de ligar, pela vida comunitária, os princípios do cristianismo primitivo, descritos nos Actos dos Apóstolos, com as práticas ancestrais dos índios, orientadas num sentido pacificador. Ao longo da obra, encontramos descrições sobre os hábitos e costumes dos guaranis, que, antes da missionação, praticavam rituais de antropofagia em relação aos inimigos vencidos na guerra, viviam em poligamia e dedicavam-se a uma economia agrária elementar de natureza recolectora. Foram trinta os povos organizados pelos jesuítas, cuja existência tem causado, ao longo do tempo, admiração, em virtude do modelo quase utópico que pretendiam concretizar, mas também desconfiança, por poder envolver um projecto de domínio político dirigido pela Companhia de Jesus. Hoje, os trinta povoados estão distribuídos pela Argentina (15), Paraguai (8) e Brasil (7), e sete estão classificados pela UNESCO como património da humanidade. Na nossa viagem visitámos seis das “reduções” classificadas: Trinidad, Jesus de Tavarangue (Paraguai), Santo Inácio Mini, Loreto, Santa Ana (Argentina) e S. Miguel das Missões (Brasil) – tendo apenas ficado por ver Santa Maria Maior, nas margens do rio Uruguai. As reduções jesuíticas expandiram-se no decurso do século XVII, graças a um intenso movimento demográfico que pôde contrariar as epidemias e as mobilizações militares. Em 1647 já havia mais de 28 mil habitantes nas “missões jesuíticas” e em 1732 o número chegou aos 141 mil. Com a extinção da Ordem as “missões” foram abandonadas à sua sorte, sendo extintas a partir da segunda década do século XIX, em resultado das guerras de fronteiras. A epopeia dos jesuítas foi, apesar das diferenças, semelhante, nas dificuldades e nos contratempos, à dos bandeirantes: «nos relatos descrevem-se os missionários escalando aqui abruptas montanhas; atravessando além florestas espessas, desertos sinistros, rios cortados de rápidos, onde muitas vezes as pirogas se despedaçam contra os escolhos. Nas bacias do Paraná e do Uruguai, lutam contra a floresta tropical; afrontam as chuvas torrenciais, os pântanos, o calor húmido “todos os insectos e todas as pragas que a vingança de Deus enviou ao Egipto”». Mas o maior combate foi contra a mentalidade dos colonos que desejavam contar com a mão-de-obra dos índios, na lógica das “encomiendas”, segundo a qual ficariam ligados à terra, como os servos da gleba do feudalismo. «É uma verdadeira praga que o Evangelho arrasta nas suas conquistas – nota o Padre Montoya -: mal os pagãos conquistam a liberdade eterna através do baptismo, logo se vêem lançados na servidão e no cativeiro». Para os jesuítas isso era inaceitável, até porque um indígena não era um infiel, mas um “inocente”, por isso merecia a conversão e a “reorientação”, o que obrigaria a combater as “encomiendas” e a escravatura, e a criar comunidades cristãs de acordo com as boas tradições locais. Neste sentido, os jesuítas protegeram e desenvolveram a consciência identitária dos guaranis, favorecendo relações de intercâmbio (como uma confederação) entre diferentes comunidades para melhor satisfação das necessidades. Assim, cada “redução” pressupunha uma organização política baseada no poder colegial (Cabildo), constituído pelos caciques e por dois padres jesuítas (um com funções seculares e outro com funções espirituais) e uma organização económica, centrada na produção de bens, na troca (do ferro, do algodão, das produções agrícolas), no ensino e na formação. Longe da propriedade privada, já que cada um tinha apenas direito aos seus instrumentos de trabalho, na língua guarani distinguia-se o “amambae” (terra dos homens), que satisfazia as necessidades de subsistência da comunidade, e o “tupambae” (terra de Deus), que satisfazia as necessidades do culto e a protecção dos carenciados. A “redução” desenvolvia-se em torno da Igreja, imponente, de três naves, com baptistério, sem obedecer ao modelo de salão jesuítico, por se tratar de uma igreja paroquial, com púlpito a meio da nave para haver uma maior proximidade dos fiéis. O estilo barroco recebeu elementos da cultura índia – instrumentos musicais, erva-mate. Em frente do templo estende-se uma praça ampla rodeada das casas de habitação, com galerias de arcos e colunas, que permitiam a comunicação fácil entre as várias alas. No lado direito, de quem olha para a fachada da igreja situava-se o edifício do Cabildo. Do lado esquerdo o colégio, as oficinas, a biblioteca e o refeitório. Atrás do templo, a horta comunitária e o edifício onde se albergavam as viúvas, as mulheres desamparadas, os órfãos e as noivas prometidas (o “cotiguaçu”, a cargo de “tupambae”). Este era o modelo normalmente seguido, que vimos em vários estádios. Em Jesus de Tavarangue foi-nos dado ver uma aldeia em construção, incompleta, já que foi refundada em 1759 e abandonada em 1768, mas em N. Senhora do Loreto ou em Santa Ana vimos as “reduções” ainda ocultas pela floresta tropical, numa fase inicial da pesquisa arqueológica. Foi fascinante descobrir, a pouco e pouco, o que estava contado e descrito nas “cartas anuas” pelos padres jesuítas e que podíamos confirmar “in loco” como se o tempo tivesse parado.
Guilherme d’Oliveira Martins