UM LIVRO POR SEMANA
De 13 a 19 de Agosto de 2007.
“Pessoa e Democracia” de Maria Zambrano (Fim de Século, 2004) apareceu pela primeira vez em 1958, em Porto Rico, num momento em que havia grandes expectativas sobre a renovação democrática, para além das fronteiras europeias. A autora (1904-1991), discípula de Ortega y Gasset e de Unamuno, estava exilada desde a guerra civil espanhola e desenvolveu em diversas universidades latino americanas um notável magistério, sendo reconhecida hoje como uma das grandes referências literárias e filosóficas da hispanidade. No livro de que falamos apresenta-nos uma reflexão serena sobre a democracia, a partir da noção de pessoa, que nos permite abrir pistas inovadoras para responder a muitos dos impasses e dúvidas da sociedade contemporânea que levam ao cepticismo, à dúvida, à indiferença e até a um certo cinismo perante as instituições políticas. A certa altura lemos: «A Polis podia ter dito ao seu cidadão: “de que sejas um homem depende a minha existência”». E a autora recorda que, na antiga Grécia, Sócrates deveu à sua cidade o ter sido livre, sentindo-se indelevelmente ligado a ela. Foi, no fundo, a cidade que permitiu a visibilidade da singularidade humana, através da qual cada um apareceu (e aparece) como ser humano, com todas as consequências. Um ser livre e responsável pode começar a sê-lo graças ao reconhecimento da cidade. Mas trata-se apenas de um começo. Citando Ortega, Maria Zambrano lembra que: “As ideias são filhas da dúvida, como tudo o que é pensamento, e como são pensamentos são, portanto, filhas da solidão humana, que apenas se dá no indivíduo”. Por outro lado, as crenças “pertencem ao passado, situamo-las sempre no passado quando delas damos conta, já que a miúdo nem sequer damos conta de que são crenças; vivemos delas, sem mais”. De facto, “algo no ser humano escapa e transcende a sociedade em que vive”. Daí que tenhamos de ir do indivíduo à pessoa, compreendendo ainda que a pessoa humana não se esgota na história, “porque nalguma dimensão do seu ser está mais além dela. E por isso a produz”. Se o lugar do indivíduo é a sociedade, o lugar da pessoa é “o espaço íntimo”, a solidão. E é esta ligação entre a sociedade e o espaço pessoal que permite estabelecer uma ponte entre a cultura herdada e a cultura criada e inovadora e entre o passado e o futuro. Encontramos, pois, o “núcleo vital capaz de atravessar a morte biológica”; e aberta ao futuro, a vida abre-se à infinitude. Apenas a pessoa humana pode “unir” o tempo. E dessa capacidade de união resulta o entendimento da importância do tempo e do seu ritmo. Mas o que é a democracia? É a sociedade “na qual não só é permitido, mas exigido ser pessoa”. Está, assim, em causa um processo de humanização da sociedade, mais do que um mero procedimento formal. Se é importante o primado da lei e a existência de um sistema jurídico, a verdade é que a democracia tem de considerar um processo de legitimação que leve ao respeito efectivo da dignidade humana ou da “dignidade do ser”, na expressão riquíssima de Sophia. O subtítulo da obra de Zambrano é “A História Sacrificial”, já que, a cada passo, na cidade humana está em causa um sacrifício imposto pelo Estado e pela sociedade à pessoa, sacrifício em que o que vale mais é quem cede, o que gera uma tensão paradoxal. Para tornar as coisas mais complexas, sente-se, porém, nos dias de hoje a existência de um sacrifício invertido. “Se a aniquilação do indivíduo, para a sociedade do futuro e para o Estado do presente, tem lugar, por ser necessária, somente pode realizar-se não como sacrifício, mas como simples eliminação”. E os exemplo dos campos de concentração e da “solução final” ilustram essa trágica inversão. Em contraponto, Ortega, em “A Rebelião das Massas”, refere “o homem massa como aquele que apenas se reconhece com direitos, ávido de usar e de gozar as coisas que não só não sabe criar, como não conhece”. Pelo contrário, há uma minoria que se caracteriza “pelo afã de perfeição, por uma espécie de gozo em exigir a si própria, por uma tensão vital constante”. A sociedade, perante estes dois pólos, entra num dilema – em especial quando “a solução está na fidelidade, na dupla fidelidade ao absoluto e à relatividade, àquilo que vivemos ou vemos fora do tempo e ao tempo no seu correr implacável”. Mas, em boa verdade, não há aqui contradição, mas sim complementaridade. O que se exige é a atenção à vida real e concreta. Se o vitalismo de Ortega nos ensina que “somos necessariamente livres”, Zambrano afirma que “somos necessariamente pessoa”. Liberdade e pessoa estão intrinsecamente ligadas. A pessoa está confrontada com a solidão, que a caracteriza, diferentemente do indivíduo, e então descobre-se livre e responsável. E é a pessoa que oferece garantia de autenticidade, porque pode escolher, pode fechar ou abrir, pode aceitar ou recusar. Estamos perante a criação do homem pelo homem. Ser livre e responsável obriga a ser mais do que um número ou do que algo que desaparece na massa. Há, pois, um desafio: o de respeitarmos a singularidade, para além dos indivíduos que somos, já que o que está em causa é a possibilidade de superar a mediocridade através da autonomia, da liberdade e da criatividade. “Se o homem ocidental tirar a sua máscara, renuncia a ser personagem na história, ficará disponível para se eleger como pessoa. Não é possível eleger-se a si mesmo como pessoa sem eleger, ao mesmo tempo, os restantes. Eis que, os restantes são todos os homens”. E Maria Zambrano chama a pessoa a confrontar-se com o seu enigma, o que só pode acontecer na maturidade, e chama-a ainda a trazer à consciência o seu sonho, sobretudo quando este parece esgotado, porque o enigma inspirador está na própria pessoa humana. “E isso, apenas numa civilização em cujo Deus em pessoa pode dar-se, cujo mistério original seja o da encarnação do logos”.
Guilherme d’Oliveira Martins