UM LIVRO POR SEMANA
De 23 a 29 de Julho de 2007
A colecção “O essencial sobre…” da Imprensa Nacional – Casa da Moeda é um repositório utilíssimo de pequenos breviários que permitem conhecermos melhor a cultura portuguesa – como no caso do texto sobre “Miguel Torga”, da autoria de Isabel Vaz Ponce de Leão (2007). Neste ano de centenário de Torga (1907-1995) é fundamental compreender os passos e a obra do autor e do cidadão, indispensáveis para perceber o século XX português. Dentro de dias celebraremos, a 12 de Agosto, a data do nascimento de Adolfo Correia Rocha, em S. Martinho de Anta, no distrito de Vila Real, esse dia em que sua mãe teve de interromper a faina do campo para dar à luz nas condições que o tempo permitia. E quando lemos as páginas sentidas do “Diário” fácil é de apreender uma forte ligação à terra, às tradições, às origens, a ponto de o amor ao Porto se dever à ideia de que é a viagem em direcção às raízes que a cidade invoca… O percurso que seguiu foi ditado pela míngua de meios familiares – instrução primária na terra natal, Seminário de Lamego, falta de vocação sacerdotal, emigração para Minas Gerais no Brasil aos 13 anos, regresso a Portugal a expensas do tio com quem trabalhara, para terminar o liceu e matricular-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Em 1928 publica “Ansiedade”, um livro de poemas de Adolfo Rocha, que retirará de circulação. No ano seguinte, inicia a colaboração na “presença”, com José Régio, Branquinho da Fonseca, João Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro. Esta passagem será muito marcante para o novo autor, ainda que o seu espírito independente o tenha levado a afastar-se. Ainda lança a revista “Sinal”, com um número único, ao lado de Branquinho da Fonseca, e publica sob chancela da revista de Régio o livro “Rampa” (1930), seguindo-se, em edições de autor, “Pão Ázimo” (1931), “Tributo” (1931) e “Abismo” (1932). Terminado o curso de Medicina, vai para S. Martinho de Anta e depois para Vila Nova de Miranda do Corvo como clínico geral. Em 1934 adopta em “A Terceira Voz” o pseudónimo de Miguel Torga, em homenagem a Miguel de Cervantes e a Miguel de Unamuno, e a uma urze do seu “Reino Maravilhoso”. Em 1936 funda a revista “Manifesto” com Albano Nogueira, e aí afasta-se do esteticismo individualista da “presença” para se preocupar com o papel dos intelectuais e artistas na sociedade. Porém a censura não permite que o projecto vá além dos cinco números. São dados à estampa os primeiros três dias de “A Criação do Mundo” (1937-38). Especializa-se em otorrinolaringologia, fixa-se em Leiria e viaja pela Europa. Colabora na “Revista de Portugal” do seu amigo Vitorino Nemésio, através de quem conhece a que viria a ser sua mulher, Andrée Crabbé. Sente profundamente o drama da guerra civil espanhola, projectando-a nas reflexões dramáticas que produz no “Diário”, “Novos Contos da Montanha”, “Poemas Ibéricos” e no quarto dia da “A Criação do Mundo”. Esta última obra é apreendida pela polícia política e o autor é preso no Aljube. Saído da cadeia, casa com a antiga aluna belga de Nemésio e publica “Bichos”, fixando residência em Coimbra, na Estrada da Beira, onde junta uma pequena tertúlia, por onde passam Eugénio de Andrade, Ribeiro do Couto e Ruben A. Abre consultório médico no Largo da Portagem e frequenta as tertúlias coimbrãs, primeiro na Central e depois na Arcádia. Em 1941 publica o primeiro volume do “Diário” e profere no Segundo Congresso Transmontano a conferência “Um Reino Maravilhoso”, que inserirá no volume “Portugal”. Em 1943 publica “O Senhor Ventura”, obra na linha da de Fernão Mendes Pinto, em torno de um herói “de influências picarescas”, que configura “o ladrão, o traficante de armas e de droga, e mesmo o homicida, sem contudo deixar de ser generoso e respeitador dos elementares princípios do amor e da amizade”. A produção literária intensifica-se e torna-o um autor lido e respeitado. Andrée Crabbé Rocha é demitida da Faculdade de Letras de Lisboa (1947). “Em 1954 revisita com a mulher o Brasil, nomeadamente os locais onde passou a sua adolescência e divulga a sua terra, através da conferência ‘Trás-os-Montes no Brasil’”. No ano de 1958 publica “Orfeu Rebelde” e vê a sua peça “Mar” ser levada à cena no Teatro Experimental do Porto, com encenação de António Pedro. No ano seguinte, o “Diário VIII” é apreendido e o seu nome é proposto para o Prémio Nobel. Lendo o “Diário” apercebemo-nos de uma atenção cívica permanente. Assina o manifesto “Dos Escritores ao País”, participa nos Congressos Republicanos, recusa o Grande Prémio Nacional de Literatura, mas aceita o Prémio Literário do Diário de Notícias. Depois de Abril de 1974 saúda com cautela o novo tempo, não sem continuar o seu combate sem tréguas pela liberdade. Recebe prémios nacionais e internacionais: Montaigne (1981), Camões (1989), Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores (1992). “O essencial sobre Miguel Torga” acompanha criticamente um percurso muito rico e multifacetado. A autora analisa com cuidado a vida e a obra, o que nos permite tomar contacto com Torga como autor global, cujo “Diário” – “para além de uma referência literária, é, sobretudo, uma referência ética, moral e cultural, uma lição de coerência de uma filosofia de vida apostada na honestidade poética e humana, tomada, esta, como missão”. Torga quis ser poeta antes de tudo (“Poeta, sim, poeta… / É o meu nome, / Um nome de baptismo / Sem padrinhos… / O nome do meu próprio nascimento… / O nome que ouvi sempre nos caminhos / Por onde me levava o sofrimento…”. Homem completo, contraditório, irresumível, de coerência inabalável, lutador como Jacob com o seu anjo, Miguel Torga quis sempre abranger a amplitude dos horizontes – “Os que falam do meu telurismo, nem de longe imaginam o fascínio que sinto pelas ondas. Nasci de facto, em terra firme. Mas sou anfíbio, carnal e espiritualmente”.
Guilerme d’Oliveira Martins