A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA

De regresso de Cabo Verde (com o gosto de reencontrar amigos e de cultivar afectos) leio “A Construção da Identidade Nacional – Análise da Imprensa entre 1877 e 1975” (Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, Praia, 2006) de Manuel Brito-Semedo. Ao longo desta importante investigação, sentimos o pulsar de uma sociedade que se afirma e de uma nação que nasce.

UM LIVRO POR SEMANA
De 9 a 15 de Julho de 2007



De regresso de Cabo Verde (com o gosto de reencontrar amigos e de cultivar afectos) leio “A Construção da Identidade Nacional – Análise da Imprensa entre 1877 e 1975” (Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, Praia, 2006) de Manuel Brito-Semedo. Ao longo desta importante investigação, sentimos o pulsar de uma sociedade que se afirma e de uma nação que nasce. “A identidade cabo-verdiana não poderia ter sido decretada por nenhum poder: foi, como aconteceu com todos os povos, o resultado final de muitas interacções…”. E é muito cativante poder seguir a evolução do pensamento da elite intelectual, através de um processo duradouro de aumento progressivo dos níveis de instrução, sem o qual não é possível entender a riqueza e a singularidade da cultura cabo-verdiana. Os nativistas da passagem do século XIX para o XX, da geração de Eugénio Tavares (1867-1930), sobretudo autodidactas, passaram o testemunho aos regionalistas, de trinta e quarenta do século XX, já formados no Liceu e alguns no ensino superior, que, por sua vez, abriram caminho aos nacionalistas, formados nas Universidades da Metrópole. Houve, assim, uma curiosa continuidade que definiu um processo seguro de maturação, que permite hoje entender a consolidação de uma identidade cultural complexa. E saliente-se, em especial, o papel desempenhado pelo magistério pedagógico de Baltasar Lopes da Silva (S. Nicolau, 1907-1989) e de António Aurélio Gonçalves (S. Vicente 1901-1984) que permitiu uma sólida transmissão da mensagem identitária aberta e culta de Cabo Verde entre a segunda e a terceira gerações. Enquanto no tempo de Eugénio Tavares prevaleceu o combate contra as leis discriminatórias que afectavam o nativo, reivindicando um estatuto semelhante ao que vigorava para os habitantes dos Açores e da Madeira, o período sob influência de Baltazar Lopes pretendeu definir Cabo Verde como um caso de “regionalismo europeu”, cuja identidade singular mereceria a consideração como ponto de encontro e força criadora. Depois, a geração de Amílcar Cabral, com Gabriel Mariano, Manecas e Abílio Monteiro Duarte, José Leitão da Graça, José Araújo, Corsino Fortes e Onésimo Silveira enalteceu, em contraponto, a componente cultural africana, como um caso de “regionalismo africano”. A dialéctica afirmação / negação marcou, assim, o século passado, o que permitiu enriquecer a “identidade complexa”, e abrir o caminho da independência e da abertura cultural. De facto, uma síntese pressupõe sempre que se afirmem e, num dado momento, até se extremem, os diversos pólos em presença, o que aliás permite o enriquecimento do resultado, como acontece na “caboverdianidade” contemporânea. E assim o homem crioulo, resultado e síntese de um encontro de quantos aportaram às ilhas, afirmou-se em diálogo e em confronto – que envolveu o sobressalto nativista, que valorizou os valores originais, e que evoluiu, naturalmente, para a tomada de consciência regionalista e nacionalista, que conduziu à identidade nacional. As três gerações marcantes representaram, deste modo, uma continuidade, com os conflitos e as aproximações sempre inerentes às difíceis relações intergeracionais. A reclamação de um estatuto de igualdade, a reivindicação da diferenciação regional e a exigência de uma autonomia política surgiram, deste modo, imbuídos de uma coerência que foi concretizando a construção da identidade nacional e a compreensão das especificidades que correspondem às dimensões cultural e político-ideológica a considerar. Saliente-se, aliás, o caso da revista “Claridade”, de Baltazar Lopes, Jorge Barbosa, Manuel Lopes e Aurélio Gonçalves, publicada em S. Vicente, entre 1936 e 1960, por entre muitas dificuldades e vicissitudes materiais e dispersão de colaborações. O programa, no dizer de Manuel Lopes (1907-2005), era “fincar os pés na terra cabo-verdeana” e que teve uma influência muito significativa no sentido de uma autêntica impregnação cívica e da procura das raízes mais fundas da cultura cabo-verdeana – “em contacto com a terra os pés se transformaram em raízes e as raízes se embeberiam no húmus autêntico das nossas ilhas”. Aí esteve a modernidade crioula, ligada ao que era próprio e genuíno e ao que era universal na busca da emancipação… “Você Brasil, é parecido com a minha terra. / As secas do Ceará sãos nossas estiagens, / com a mesma intensidade de dramas e renúncias” – disse Jorge Barbosa. E é muito estimulante verificar a interdependência entre o conteúdo da imprensa caboverdeana e a construção paulatina da identidade nacional, bem como o facto de o discurso jornalístico ter funcionado como expressão e fonte de influencia no processo de construção da identidade crioula de Cabo Verde. E se falamos de identidade crioula, não podemos esquecer a raiz etimológica dessa palavra que tem exactamente a ver com um permanente acto de criação. Se referimos a geração da “Claridade” e a importância do movimento, muito para além de qualquer circunstância temporal ou política, temos ainda de aludir a outras influências: a Academia Cultivar, ainda na senda do movimento claridoso (tendo como órgão de imprensa “Certeza – Folha da Academia”, 1944, S. Vicente), a “Nova Largada” (Praia, 1958, com o Suplemento Cultural do “Cabo Verde”, com Aguinaldo Brito Fonseca, Gabriel Mariano, Francisco Lopes da Silva…) e do Seló (Praia, Folha de Novíssimos, 1962). “Perante os discursos totalizantes europeísta e africanista, provámos (diz Brito-Semedo) que uma posição rígida e extremada (…) não é senão uma visão enviesada de um todo, que surgiu como resultado de um processo histórico-político-social que fez a elaboração dessas duas componentes, a africana e a europeia, e que levou à integração destas duas posições, que hoje constituem a vivência cabo-verdiana”.
                                                         Guilherme d’Oliveira Martins

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