UM LIVRO POR SEMANA
De 18 a 24 de Junho de 2007
Hoje falo de um livro e de um filme. A obra clássica que refiro, um livro de contos de Camillo Boito (1836-1914), foi publicada em 1883 com título “Senso e Altre Storielle Vane” (Garzanti Libri, 1990) e foi com base nela que Luchino Visconti realizou uma das suas obras-primas e uma das grandes referências da história do cinema. Quando, há tempos, num documentário sobre João Bénard da Costa me pediram para escolher um filme lembrei-me dessa extraordinária representação de Alida Valli… Filmes inesquecíveis? A resposta é sempre muito difícil. Em cada momento da nossa vida temos opiniões que variam, ainda que as referências fundamentais se mantenham. Orson Welles em “Citizen Kane” (“O Mundo a Seus Pés”, 1941) merece alusão obrigatória na minha memória cinéfila, mas também “Ordet” de Carl Th. Dreyer (“A Palavra”, 1955), para além de “Rear Window” de Alfred Hitchcock (“Janela Indiscreta”, 1954) ou de “Viaggio in Itália” de Roberto Rossellini (“Viagem em Itália, 1954) e de tantos, tantos outros. Ah! Esses anos cinquenta, vividos à volta da pantalha. Há dias, folheando o extraordinário catálogo “Como o Cinema Era Belo”, organizado para a Gulbenkian, pelo incansável João Bénard, senti um grande deslumbramento ao recordar o século XX, como século do cinema, com todos os seus fantásticos protagonistas. A memória não pára por entre tantas e tão desvairadas referências, diferentes, contraditórias, quase incompreensíveis. Em bom rigor nunca há um só filme (ou um livro) da vida. Há recordações, memórias que se encontram e desencontram e que se relacionam com momentos que queremos reter ou recordar. Quando revemos um filme de que gostámos ou relemos um livro que nos entusiasmou, estamos sempre a ver outro filme ou a ler outro livro. Quantas surpresas! A luminosidade varia, como nas memórias de infância, em que tudo muda no confronto com a realidade. Tudo se torna mais pequeno e relativo, quando tudo parecia imponente e absoluto. O momento é outro, a atenção também está desperta de outra maneira. Mesmo assim, o exercício pode ser feito. É sempre estimulante voltar atrás, para tentar ver aquilo que aparece como bom e irrepetível. Luchino Visconti é um autor com capacidades fantásticas, que joga com a memória e com o espírito dos tempos. Na sua obra, há, assim, uma implacável recordação do tempo, com os três presentes de que falava Santo Agostinho, o passado, o presente e o futuro. É esse presente ambíguo que encontramos em “Senso” (“Sentimento”), filme do ano mágico de 1954… Estamos perante um romance em estado puro, e diante de um filme que conjuga ingredientes apaixonantes – Veneza, Verona, a arte italiana na sua pujança, a música e a permanente alusão à ópera, muito para além da inicial referência de Verdi no cenário de La Fenice. Há uma evidente intemporalidade em “Senso”, apesar de se tratar de uma fábula muito marcada pela História, concretamente pelo conflito entre os patriotas adeptos da unificação italiana e os opositores a essa vontade determinada e voluntariosa, avultando a sombra imperial austro-húngara. A Condessa Serpieri, Lívia (representada por Alida Valli), conta-nos a sua história, na primeira pessoa, num presente que se projecta no passado. Mas, no filme, diferentemente do que acontece no conto de Camillo Boito, o drama continua presente, e nós, os espectadores, somos obrigados a partilhá-lo com estupefacção e angústia. As feridas da tragédia, mantêm-se abertas, em lugar da frialdade ostentada por Serpieri no original literário. No texto do conto, afinal uma história vã, tudo parece mais distante e Lívia considera a aventura trágica passada à história. Afinal, tudo está dividido e fragmentado neste tempo de incertezas e escolhas. Aventura trágica? Sim, o amor impossível com o jovem tenente Franz Mahler (Farley Granger) é um amor imparável, assumido por Lívia, que até então não tinha cometido qualquer ligeireza. A partir do momento em que a Condessa vai à casa dos oficiais para encontrar Franz, há um destino que aparece traçado nos astros e que anuncia um desenlace tremendo – que acontecerá, com a condenação e o fuzilamento do jovem tenente, por denúncia da própria Lívia, obcecada pelo ciúme. E o oficial (cada vez mais dividido entre o amor e a chamada do dever e da causa) cai na armadilha do destino, deixa-se cegar e é vítima de uma consumação trágica. A Condessa, presume-se no livro, regressa à sua vida anterior, serena, com as aparências salvaguardadas, incapaz de cometer uma ligeireza, enquanto no filme se deixa arrastar pela loucura, pelas ruas de Verona, ficando a dúvida sobre como nos conta a história que acabámos de ouvir. Como tem salientado João Bénard da Costa, “Senso” é um filme operático, que começa, significativamente, no quarto acto de “O Trovador” de Verdi. No entanto, a ópera não volta a ser referida expressamente ao longo do filme. Fica subentendida, como se a Sinfonia nº 7 de Bruckner, que enche a obra de Visconti, se tivesse tornado o tema dominante de uma encenação que o realizador quer em quase tudo fazer assemelhar a uma ópera italiana. “Senso” é um encontro de sentimentos contraditórios e não é de interpretação ou de leitura fácil e imediata. Lívia Serpieri é difícil de compreender, já que ela própria está profundamente dividida quanto a sentimentos e causas. E é essa ambiguidade, que o génio do realizador acentua, aliada à encenação e representação irrepreensíveis, que tornam este filme uma obra-prima de Visconti, fazendo reviver o livro até aos dias de hoje…
Guilherme d’Oliveira Martins