UM LIVRO POR SEMANA
De 28 de Maio a 3 de Junho de 2007.
Em “Valsas nobres e sentimentais” de Frederico Lourenço (Cotovia, 2007) estamos diante de uma reunião de crónicas extraordinariamente estimulantes. Com inteligência e humor, podemos usufruir de testemunhos e reflexões, desde a música ao modo de dizer, passando pela literatura e pelos escritores e, naturalmente, pela antiguidade clássica.
“Maria Agustina”, por exemplo, é um texto delicioso sobre os diferentes modos como é lida a obra de Agustina Bessa-Luís, desde a adoração à recusa, passando pela indiferença. E o certo é que essa diversidade de atitudes foi sentida e assumida pelo autor, que começou por estar rodeado de adoradores, tornou-se reticente, mas, a pouco e pouco, foi-se rendendo. “O meu espírito ‘do contra’ levou-me, como é óbvio, a reabilitá-la”. E por entre a verificação de descuidos na escrita ou na concepção literária, ficou essencialmente a desconcertante sensação de que “isso não interessa” (como diria João Bénard), já que: “à cigarra compete apenas concentrar-se no seu próprio canto, independentemente da zurraria dos burros que a criticam” (Calímaco dixit)…
“Norte” constitui uma magnífica declaração de amor (e de estupefacção) em relação a “muitas facetas fascinantes”, a extraordinários acepipes (“não conheço cidade como Braga para se comer divinalmente por dez euros”) e a uma bizarra indiferença ou desafeição das gentes minhotas em relação às suas coisas. “Tudo é verde, isso é mais do que evidente; mas há um halo ou bafo de luz dourada que paira sobre o panorama que avisto da janela, um esfumar lento e macio em direcção ao horizonte, o qual, mais de uma vez, é definido por uma massa sólida de verde – desta vez o bosque de carvalhos seculares, para lá do severo renque geométrico das tílias” – dir-nos-á, soberbamente, Frederico Lourenço em “Verde”…
“O som de Portugal” suscita, por outro lado, uma agradável e inesperada surpresa sobre o modo de dizer dos erres. Enquanto os candidatos presidenciais da esquerda articulam os erres segundo a velha usança portuguesa – o ponto de articulação é apical: “a ponta da língua rola contra o palato duro, um pouco atrás daquilo a que Homero chamou ‘a barreira dos dentes’”, Cavaco Silva e as classes urbanas (afrancesadas) articulam o r na garganta, como o som gutural. No entanto, o r de Gil Vicente, de Camões e de Camilo sempre foi apical e nunca gutural. E “quando Sophia declama os seus poemas, o ‘r’ gutural de Cavaco Silva é cuidadosamente substituído pelo ‘r’ apical de Manuel Alegre”.
Noutra crónica, sobre as vicissitudes pessoais do tradutor, há um retrato belíssimo ainda de Sophia, teatral, inexcedível, inteligente e sensível. E de tudo fica, no cultor da literatura clássica, um ideal – “o ideal que graças a ela ainda persigo”, e que se liga à “luz cor de amora que no poente se espalha”, tão próxima do roxo que “Homero fez florir sobre o mar”. Afinal, é mesmo preciso “viver a Grécia por dentro”. E, apesar de a Grécia de Sophia ser muito própria, a verdade é que “é uma Grécia construída pelo olhar dela, uma geografia anímica que tem tanto de Grécia como de Portugal”. Um Algarve reencontrado? “Aqui despi o meu vestido de exílio / E sacudi de meus passos a poeira do desencontro” – dirá sintomaticamente Sophia ao chegar à Grécia. Mas é Homero quem está sempre bem presente na obra sublime da poeta, como se vê em “Menina do Mar”: “E o Rei do Mar estava sentado no seu trono de nácar, rodeado de cavalos-marinhos, e o seu manto de púrpura flutuava nas águas”. E tudo isso leva o autor a confessar, comovidamente: “no fundo, o que eu tentei fazer foi traduzir Homero como se eu próprio me chamasse Sophia Andresen, embora (…) sem andresenizar artificialmente o texto”.
As crónicas sucedem-se a um ritmo fantástico, marcado pela diversidade dos temas e pela força das reflexões. Sobre Bizâncio, o autor recorda, num tempo de intolerâncias, a tradição de liberdade religiosa, quer nos idos de 638, no tempo de Sofrónio, em que a liberdade religiosa foi garantida pelo califa, quer em 1453, depois dos três dias de saque: “Quando se fala de intolerância (quer islâmica, quer cristã), é bom pensarmos primeiro na experiência bizantina. Nela, temos muito que aprender”.
“Valsas nobres e sentimentais” é um inesgotável acervo de impressões que não nos podem deixar indiferentes. Há, aliás, um punhado de textos autobiográficos, que nos atraem, não só pela sobriedade, mas pela qualidade da escrita e pela elegância na exposição – “Vida de Helenista”, “Oxford”, “Católico homossexual”, “Pôr-me a nu” complementam-se com a expressiva invocação de “Raul Miguel Rosado Fernandes”. Mas há ainda uma promessa de texto sobre Thomas Mann, que se singulariza pelo que aponta e pelo que anuncia. E “last but not least” há os textos do melómano. Textos marcados pela cadência musical, onde existe um especial afecto por Elisabeth Schwartzkopf, a quem são dedicados, pelo menos, nove textos, e donde resulta, contra todos os detractores, a consideração das qualidades de “uma grande, grande cantora”: “a beleza da voz, o recorte poético na enunciação de cada palavra, cada cambiante psicológico da personagem, a voz a rir, a voz a chorar, a voz a insinuar, no sublima Quinteto, a presença absoluta de Deus”… Poderia continuar a falar do livro, mas calo-me. É urgente lê-lo…
Guilherme d’Oliveira Martins