UM LIVRO POR SEMANA
De 26 de Março a 1 de Abril de 2007
Fernand Braudel (1902-1985), um dos grandes historiadores europeus do século XX, escreveu “Gramática das Civilizações” em 1963, como relatório sobre as reformas essenciais a introduzir no programa de História no ensino secundário (edição portuguesa, tradução de Telma Costa, Teorema, 1989). O resultado imediato deste texto notável foi a introdução do estudo das grandes civilizações no currículo francês. No entanto, hoje, a sua leitura permite-nos encontrar uma apresentação inteligente, fundamentada e atraente sobre o tempo planetário, numa perspectiva da história da humanidade. Daí a necessidade do seu desenvolvimento sincrónico e diacrónico. E Braudel traz-nos, como sucessão lógica: as civilizações não europeias – o Islão e o mundo muçulmano, o continente negro, o Extremo Oriente (num cuidadoso percurso desde as origens longínquas até à evolução da China, da Índia, do Extremo Oriente e do Japão) – ; e as civilizações europeias – a Europa, a América e a Outra Europa. E verificamos que “uma civilização não é (…) nem uma economia dada nem uma dada sociedade, mas sim o que através das séries de economias, das séries de sociedades, persiste em viver, só a custo e pouco a pouco se deixando inflectir”. Uma civilização, como continuidade, só se atinge a longo prazo, como num fio que se vai desenrolando. Estamos diante do que “um grupo de homens, ao longo de uma história tumultuosa, muitas vezes tempestuosa, puder conservar e transmitir, de geração em geração, como o seu bem mais precioso”. Mas não basta entusiasmos globais, como os de Spengler ou de Toynbee, por muito atraentes que se possam apresentar. Para Braudel, é necessário regressarmos constantemente à realidade – aos números, aos mapas, às cronologias exactas. Numa palavra, faz falta a verificação, para evitar as simplificações ou as caricaturas. “Mais do que à gramática das civilizações é ao estudo dos casos concretos que temos de nos apegar para compreendermos o que é uma civilização”. Tudo isto, porque “as civilizações levam um tempo infinito a nascer, a arrumar a casa, a emergir”. Veja-se, por exemplo, o Islão como civilização, por excelência, de movimento e de trânsito e a importância decisiva do Mediterrâneo. Eis o que durante quatro ou cinco séculos (séculos VIII a XII) foi a mais brilhante do mundo antigo. E a unidade cultural não destruiu particularismos “evidentes e vivazes”. Ciência, técnica, filosofia conhecem um desenvolvimento extraordinário. Mas, subitamente, a decadência inicia-se no século XII, por razões incertas – entre as quais a explicação de Pirenne, do fechamento do Mediterrâneo ao Islão, que gerou esse declínio, como, inversamente, os europeus tinham sido vítimas do processo inverso… Quanto à África Negra trata-se de perceber por que razão se abriu “mal e tardiamente ao mundo exterior” e como é que a história tem uma palavra a dizer no sentido da abertura e do “despertar” que ainda não estão consumados. E o Oriente? “As civilizações de massas do Extremo-Oriente – sobretudo a Índia e a China – teriam vivido pacificamente se, para as perturbar, mais não houvesse que essas zonas internas de selvajaria, com os seus agricultores pobres, comedores de florestas. O seu tormento, sob a forma de verdadeiros flagelos bíblicos, veio dos vastos desertos e estepes (a oeste e a norte da China, a norte a oeste da Índia), tórridos sob o sol do verão, soterrados de Inverno sob enormes amontoados de neve”… Na China coexistem factores contraditórios, conservadores e avançados, mas prevalece o isolamento e um dirigismo dos mandarins que, na prática, favoreceu a continuidade e a ancestralidade. Na Índia heterogénea, sentimos a força de várias influências, de uma civilização indo-ariana ou védica, de uma civilização hindu e de uma civilização islâmica e hindu, que os portugueses e os ingleses limitaram. Mas hoje, depois de Gandhi e Nehru, assistimos à utilização da ciência e da técnica no mercado global com uma eficácia que a muitos surpreende… O Japão misterioso é um produto histórico de diversas influências externas – da China, a partir do século VI, e dos europeus, a partir do encontro com os portugueses, com uma interrupção de 1639 a 1868. Quase tudo foi importado e reformulado – os jardins em miniatura, as cerimónias do chá, as cerejeiras em flor e o budismo – até à reconstrução e à industrialização depois de 1945, em que tudo parecia posto em causa… E a Europa? Como se definiu o espaço de liberdades urbanas? Como se gerou a liberdade individual? Que caminho foi aberto pelo cristianismo, pelo humanismo e pelas descobertas científicas? Em lugar da história eurocêntrica, temos, porém, de compreender as nossas raízes na relação com os outros. A verdade é que houve circunstâncias favoráveis a um processo original de industrialização, mercê de acumulação de capital e de condições culturais. No momento em que comemoramos os cinquenta anos da “Comunidade”, cabe voltar a ouvir Braudel dizer: “a Europa nada será se não se apoiar nas velhas forças que a fizeram, que nela actuam ainda profundamente, numa palavra, se ignorar todos os seus humanismos vivos”. Mas ainda há as Américas, o novo mundo, os Estados Unidos, como prolongamento da Europa, transformada em Eldorado, e o outro novo mundo, a inesgotável América latina. E, por fim, a Outra Europa, a do leste, num tempo em que ainda estavam longe (e Braudel não adivinhava) as profundas transformações de 1989. Em suma, deparamo-nos com a análise das civilizações como espaços, como sociedades, como realidades económicas e como mentalidades colectivas. E assim estamos perante o esboço de um historia mundi. O que nos prepara, de algum modo, para uma cidadania universal…
Guilherme d’Oliveira Martins