UM LIVRO POR SEMANA
De 12 a 18 de Março de 2007.
“O Mundo à Minha Procura” de Ruben A. (3 volumes, Assírio e Alvim, 1992; 1ª edição, 1964, 1966, 1968) é um caso singularíssimo da literatura de memórias em Portugal no século XX. Felizmente que o autor, numa idade em que normalmente não se escreve memórias, teve essa ideia. E o resultado é surpreendente, no talento e no modo como retrata a sociedade e as pessoas, em que e com quem viveu. Infelizmente, viria a falecer num momento em que tudo se esperava ainda dele, e por isso as memórias precoces tornaram-se um documento ainda mais valioso. Nascido numa família conhecida e com pergaminhos do Porto, tendo vivido num lugar que hoje nos fascina, o Campo Alegre, antes da moderna urbanização, num tempo em que havia quintas e casas independentes, Ruben Andresen Leitão (1920-1975) descreve com muito humor e num estilo arejado não só o que era essa sociedade heterogénea e culta onde se formou, mas também quais foram as suas aventuras e desventuras, por contraste com um país fechado e taciturno, que era o do país oficial… “Uma autobiografia como O Mundo à Minha Procura só pode ser escrita por volta dos quarenta anos. Deixá-la para mais tarde é atraiçoar a vivência poderosa que se acarreta, mas que na pista dos quarenta tem de alijar parte da carga que se trouxera das estações do passado”. Ruben quis arrumar a casa, consertar as telhas e produziu uma das suas obras-primas, ele que nos legou ainda A Torre da Barbela, romance em carne viva, irónico, saborosamente anacrónico, propositadamente onírico, sobre oito séculos da história portuguesa. “Fiction is always closer to reality than fact” – disse Henry Miller e Ruben A. interpretou-o à letra. Eis uma óptima definição desta “autobiografia”, onde deparamos, a cada passo, com as fronteiras muito ténues entre ficção e realidade, sendo que não temos dúvidas da verdade do autor da autenticidade do seu testemunho. Não é um fingidor, é alguém que tem um olhar de raio x, que vai para além do perceptível imediatamente, que perscruta e descobre, o que passa despercebido ao comum dos mortais. “A casa da Quinta do Campo Alegre, vista à distância de trinta ou quarenta anos, é uma casa monoblóquica, em forma de cubo, pesada, sem características especiais; mas agora, com o correr dos anos, ganhou em estilo, criou a imponência do feio e não se pode deixar de admirar a massa enorme, a simplicidade de linhas e o pouco conforto que a habitação sempre deu”. Sem ademanes nem invocações idílicas, o que temos é a memória em estado puro. E no entanto Ruben nada encontrou na vida que se comparasse aos Natais do Campo Alegre: “os primos, os jogos, os presentes, tudo formava um reino de fantasia em que hoje só acredito quando me reúno com a Sophia, o Tomás, o Alfredo, o Jóni ou com os mais miúdos de então”. E ao ler Ruben nós até entendemos melhor muitos dos contos de Sophia cheios de intensa serenidade e de mistério. Um misto religioso e pagão, cosmopolita, feito à beira Douro, mas também vindo das paragens do “Cavaleiro da Dinamarca”. O Porto é descrito com minúcia: as lojas, as ruas, os acepipes, o bolo-rei da Oliveira comido avidamente à espera que saísse a prenda, as laranjadas, as pessoas, os costumes e a avó Joana Andresen, “a velha máquina”. “Cidade que ensina aos homens os seus deveres cívicos”. O autor relata-nos os mais pequenos pormenores, desde os desaires nos estudos, que permitiram conhecer Agostinho da Silva, às vitórias literárias com Adolfo Casais Monteiro, ao desporto, ao acidente com arma de fogo, às decepções com a Universidade, passando pelas primeiras paixões, pela amizade com Menez e Ruy Leitão ou “pelo mais notável tipo da minha geração” – Manuel Torre do Valle. Depois, temos a caminhada do jovem historiador, entusiasmado por D. Pedro V, a ida para Londres, o leitorado de português e o tristíssimo episódio da “crítica” de Salazar às Páginas II (“o livro, ou é de um louco ou de um sujeito que, tendo dinheiro para pagar um livro de dislates, se propôs rir-se de todos nós”). Ruben não aceita ficar, apesar de ter havido marcha-atrás nos propósitos iniciais de o despedir. Mas fica “impossibilitado de desempenhar qualquer cargo oficial em Portugal”… É o tempo em que irá dirigir, como adido cultural da Embaixada do Brasil, o boletim “Artes e Letras”, mas esses são já outros contos que esta memória não contempla… Desalentado, confessa: “Enquanto o meu planeta não rodasse o tempo necessário para completar novo ciclo de amor, eu morria civicamente. Emigrava no dia a dia, consumindo em excesso as forças, o meu eu agitado, que a poucos interessava, fraca cotação para uma bolsa de valores que em Londres conhecera dias de alta. Restava eu, podia criar com o que me tinham deixado, demorava anos a tapeçaria, esta que exactamente neste momento vai escrita. O resto, o mundo que tomasse conta dos meus despojos”…
Guilherme d’Oliveira Martins