UM LIVRO POR SEMANA
De 26 de Fevereiro a 4 de Março de 2007
A série “Reis de Portugal” do Círculo de Leitores, em que se integra a obra que referimos hoje, constitui uma iniciativa de assinalável qualidade que merece ser saudada. Falo de “D. Carlos”, da autoria de Rui Ramos (2006), onde o autor procede a uma análise da vida do monarca biografado e do período muito complexo em que viveu. Rui Ramos fez larga investigação sobre a segunda metade do século XIX e início do século XX, que se materializou, designadamente, no volume que dirigiu da “História de Portugal”, coordenada por José Mattoso ou na investigação que realizou sobre a “Vida Nova” e sobre a figura de João Franco. O livro agora dado à estampa dá um passo adiante em relação ao que conhecíamos, e esse é um motivo acrescido de interesse. Nesta leitura seguimos, a par e passo, a um ritmo alucinante, os acontecimentos, os testemunhos, as intrigas, os golpes e os contra-golpes. E sentimos que a sucessão de acontecimentos se desenvolve como uma tragédia. O tema central é o fim da monarquia constitucional e, tanto do lado dos que a procuram salvar, como da parte dos que lhe pretendem pôr termo, sentimos que tudo parece desenhado nos astros… Talvez, porém, tudo tenha sido adiado desde o momento em que, ainda no reinado de D. Luís, em 1881 ou em 1883, houve quem pensasse já no fim do regime. A decadência prolongou-se e D. Carlos ainda julgou que poderia dar um novo fôlego às instituições constitucionais. Em 1906, depois de várias tentativas com os partidos tradicionais, procurou mudar o sistema. “Ao político em que apostou (João Franco) para protagonizar a mudança do sistema partidário faltava talvez em tacto o que sobejava em vontade”. E o certo é que o rei estava tão confiante em que poderia dominar a situação que se dispôs a entrar em Lisboa, a 1 de Fevereiro de 1908, sem escolta, apesar da agitação reinante. Talvez a história tivesse sido, no entanto, diferente, se o rei e o príncipe real não tivessem morrido. Franco poderia ter ganho as eleições, já convocadas para 5 de Abril, abrindo caminho a uma nova fase de alternância política entre a “ordem” e o “progresso”, num bipartidarismo à inglesa, bem como à resolução do problema financeiro, pondo termo ao funesto tema dos “adiantamentos à casa real”. No entanto, a história não se faz com suposições, e naquele dia, na Praça do Comércio, a dinastia finou-se de facto, com a morte física do rei e com um golpe palaciano (o “segundo regicídio”) que fez regressar à ribalta a velha guarda partidária, simbolizada por José Luciano de Castro. “Como disse Agostinho de Campos, é fácil matar um rei, mas ninguém sabe o que pode morrer com ele” – diz o autor. “Às vezes, é todo um mundo. Neste caso, o mundo da monarquia constitucional e do liberalismo, um mundo que apenas sobreviveu mais dois anos ao regicídio, para desaparecer de vez em Outubro de 1910. E foi o fim desse mundo, subitamente distante e exótico, que até hoje nos tem impedido de compreender D. Carlos”. Eis a questão. E ao longo da obra assistimos à tentativa de suster a queda inexorável de um baralho de cartas periclitante. De tudo o que lemos, facilmente percebemos que D. Carlos (1963-1908) esteve no sítio errado no momento errado, apesar de ser “um dos mais inteligentes e capazes reis do seu tempo”. Era um artista reconhecido e um cientista com provas dadas. Agustina disse, com ironia: “Era um rei demasiado inteligente para rei. Os reis e os poetas não devem ser inteligentes”. Tinha 26 anos quando foi aclamado rei e apenas 44 quando foi morto. Teve consciência dos riscos que corria e da necessidade de mudar o curso dos acontecimentos. Não se eximiu às suas responsabilidades, mas tinha uma porta muito estreita diante de si. “Preso por ter cão, preso por não ter”. Uns acusaram-no de intervir de mais, outros de não agir como deveria. A questão inglesa (o Mapa-Cor-de-Rosa e o Ultimato) marcou o início do reinado e definiu o quadro da tragédia. Herdados os erros passados, perante a crise do rotativismo, evidente desde as mortes de Braamcamp e de Fontes Pereira de Melo, a verdade é que tudo se tornou muito difícil numa “monarquia sem monárquicos”. Ramalho Ortigão e os seus amigos propuseram-lhe mesmo que fizesse “a revolução que o povo não fez”. O poder moderador poderia funcionar. O rei procurou ser árbitro, mas depressa percebeu que as forças políticas em presença eram contraditórias e que os poderosos interesses instalados se revelavam incapazes de encontrar uma solução que aliasse a representação, a legitimidade popular e a força reformista – que a burguesia das cidades exigia. Franco ainda propôs bater-se no mesmo campo dos republicanos e ao rei esse discurso soou com sentido. No entanto, a crise revelou-se, cada vez mais, sem saída, e a alternativa republicana, ainda que frágil, aproveitou-se das circunstâncias. As nuvens foram-se adensando, os dissidentes dos partidos dinásticos foram aumentando em número e em influência, o rei tornou-se símbolo de uma situação insustentável. Eis os ingredientes ideais da tragédia. (A colecção é dirigida por Roberto Carneiro).
Guilherme d’Oliveira Martins