Um livro por Semana
Semana de 15 a 22 de Janeiro de 2007
Nas comemorações dos cinquenta anos da Fundação Calouste Gulbenkian Paula Rego pintou o tríptico “Vanitas”, a partir do conto de Almeida Faria “Vanitas – 51, Avenue d’Iéna”, agora dado à estampa em livro com introdução de Eduardo Lourenço. O conto, que começou por ser publicado na “Colóquio-Letras” e agora foi revisto e aumentado, permite-nos usufruir de um texto onde o fantasma do antigo habitante dessa casa parisiense, plena de recordações e cheia de referências artísticas, revive num monólogo singularíssimo, que Jorge Silva Melo apresentou, com muito humor e erudição no passado dia 11 de Janeiro no Centro de Arte Moderna. Mas o fantasma, sempre inquietante, por definição (Chesterton disse-o por todos em relação aos dos castelos da Escócia), desta feita torna-se acolhedor, autêntico cicerone de excepção. E o dito espectro tem a arte de se tornar o “deus ex machina” das personagens da sua colecção, a começar em Fantin-Latour e nas duas inesperadas figuras de “A Leitura”, natureza-morta e natureza viva simultaneamente. “Aliás, isto de morte e de vida é muito relativo. A vida é um vento breve, mas a morte não o é menos para quem quiser continuar a cadeia de morrer e nascer”. Adorador de apenas dois deuses – a natureza e a arte -, o espírito (“calvo, de rosto redondo que o bigode e as densas sobrancelhas sombreavam…”) visita agora a sua casa da Avenue d’Iéna à noite para poder usufruir da memória. Antes não dormia no casarão, para que o tempo se não tornasse indiferente. É, no fundo, a memória que procura partilhar com o jovem às voltas com uma estranha insónia. E confessa que resiste às naturezas-mortas. São excepção na sua pinacoteca. E a de Jan Weenix não o é plenamente porque o pavão de longuíssima cauda está vivo e atento, perante um cisne morto, confundido com um troféu de caça. O coleccionador é a um tempo caçador e artífice de momentos únicos. A colecção é sempre recriação e procura caminhos que façam sentido, como o jardim da Normandia que o arménio fantástico quis fazer. Mas a busca de momentos únicos leva à ilusão de se poder chegar ao improvável, porque a determinação nem sempre consegue o impossível – como, por exemplo, descobrir em S. Petersburgo uma “vanitas” de Whistler (“memento, homo, quia pulvis es in pulverem revertis”). E o fantasma diz: “a pintura obceca-me tanto que a qualidade das cidades depende dos seus museus de belas-artes”. Paris principiava pelo Louvre e aí, diante dos momentos mais intensos, o caçador como que levitava, passava a outra dimensão, tendo de ser acordado ou avisado pelos guardas à hora do fecho do museu. Se virmos a colecção que reuniu depressa percebemos que o requinte se alia ao talento, que a determinação se junta à intuição muito apurada. “Jeunes femmes!”. Ghirlandaio e o “Retrato de uma Jovem”, Rubens e “Helena Fourment”, Van Cleve e “Dona Leonor” (rainha de Portugal e de França)… “Habituei-me a lidar com as minhas obras de arte como um sultão lida com o seu harém, como um sábio trata os amigos mais queridos e um pai se preocupa com os filhos”… Sultão de coisas, mas não de quaisquer coisas, de obras de arte, de ícones com uma vida própria, dando o direito de os poder usufruir sempre que quisesse – eis o que desejou, cima de tudo, a sombra, agora ciente de a Avenida d’Iéna estava despovoada, pobre, quase inútil. Saint-John Perse, o poeta, o diplomata, o cultor da vida prenunciou que se o fantasma tivesse prosseguido o caminho da escrita iniciado no precioso relatório das visitas à Transcaucásia poderia ter sido um escritor reconhecido. Mal ou bem, o certo é que aquele caçador de momentos e de obras de arte pôde naquele momento de insónia do jovem narrador, de quem não ouvimos uma palavra de resposta ou de dúvida perante o espírito, exprimir-se como uma personalidade única, que não poderia deixar de se perguntar e de se interpelar sobre o versículo emblemático e interrogador do Eclesiastes do rei Salomão: “Vanitas, vanitatum, et omnia vanitas”. E Paula Rego fixou esse “memento” nos dias de hoje, com os símbolos tradicionais, a caveira, o marcador do tempo e a foice, mas também e sobretudo com tudo o que faz parte da imanência, do nosso quotidiano horizontal, que Eduardo Lourenço convoca…
Guilherme d’Oliveira Martins