UM LIVRO POR SEMANA
De 1 a 7 de Janeiro de 2007
Bom Ano! Em 2007 assinalar-se-á o centenário de Hergé, Georges Remi (1907-1983), o criador de Tintin. Ao abrir o ano, falo de um álbum que marcou de modo decisivo a história da “escola belga” de “banda desenhada” – “O Lótus Azul” (“Le Lotus Bleu”, 1936). Pode dizer-se que com esta obra não só o autor iniciou a fase madura da sua carreira, mas também abriu uma nova era na história da ilustração europeia. Tintin existia desde 1929, mas havia uma manifesta incipiência nas primeiras aventuras (no país dos sovietes, no Congo, na América). Sente-se que uma boa ideia estava em desenvolvimento, e os “Charutos do Faraó” (1934) demonstram-no, mas, nos planos técnico e artístico, havia algo que faltava. Foi o encontro com o jovem estudante chinês Tchang Tchong-Jen, da Academia de Belas-Artes de Bruxelas, que determinou uma maior exigência e um especial cuidado na ligação entre o enredo, a narrativa, o cenário, o desenho e a apresentação gráfica. Um dia Tchang disse a Hergé: “se queres desenhar um bambu, transforma-te antes em bambu”, e o desenhador belga aceitou o desafio… A influência do futuro arquitecto chinês traduziu-se numa simbiose muito interessante e inovadora entre a influência da arte chinesa tradicional e a capacidade de criar algo de inédito na narrativa juvenil. Depois do livro de Hergé de 1936, fruto deste encontro tão fecundo, nasce a escola da “linha clara”, que depois contará com o contributo fundamental de E. P. Jacobs (a partir de 1942). A partir daqui Hergé sabe que a sua obra não é puramente efémera. Se até então tudo se passava sem grandes preocupações de rigor, como se fosse um mero jogo, agora surgem novas preocupações. Na preparação cuidadosa da “ida” de Tintin à China, Remi e Tchang trabalham intensamente, nos domínios da história, da geografia, da arte, da língua, da literatura e da filosofia e, o que será decisivo, na troca de informações muito precisas sobre a técnica da pintura tradicional chinesa. Hergé apaixona-se, deste modo, através do seu novo amigo, pela riqueza incomparável e pujante da civilização chinesa e isso leva-o a conceber de modo inteiramente diferente a nova obra, longe dos estereótipos da literatura popular. “Descobria uma civilização que ignorava totalmente e, ao mesmo tempo, tomava consciência duma espécie de responsabilidade. Foi a partir desse momento que me pus a procurar documentação, a interessar-me verdadeiramente pelas pessoas e pelo país para o qual enviava Tintin, por preocupação de honestidade perante os que me liam” – disse um dia Hergé. Era uma nova arte que nascia. A atitude do autor muda. E com uma técnica surge também uma obrigação artística e criadora. Aliás, a importância do encontro com Tchang é tal que Hergé torna-o personagem da nova aventura. Além disso, os ideogramas chineses reproduzidos são da autoria do artista oriental – apelos ao boicote de produtos japoneses ou ensinamentos do dr. Sun Yat-sen. Mas a obra não é neutra. Tem como pano de fundo a guerra sino-japonesa, e ainda hoje podemos ler “O Loto Azul” como um testemunho bastante rico sobre esse período histórico. Por exemplo, faz-se referência ao célebre incidente no caminho-de-ferro de Moukden (1931), que deu pretexto às tropas japonesas para entrarem na Manchúria. Como salienta Benoît Peeters, se a perspectiva mais conhecida sobre o conflito na Europa era a japonesa, o certo é que aqui estamos em presença da leitura chinesa, pouco difundida nos meios ocidentais. A solidariedade com a causa da China é assumida (em contraste com a cumplicidade dominante por parte dos poderes europeus) e, curiosamente, esse facto vai permitir a sobrevivência do livro como fascinante repositório de uma história real, em lugar de preconceitos ou lugares comuns, que o tempo sempre devora. E assim se compreende por que razão as obras do final dos anos trinta – “A Orelha Quebrada” (1937), “A Ilha Negra” (1938) e “O Ceptro de Otokar” (1939) – tiveram um novo fôlego, e a marca indelével da influência do jovem Tchang – que será herói de “Tintin no Tibete” (1960), uma das obras-primas do nosso autor.
Guilherme d’Oliveira Martins