UM LIVRO POR SEMANA
De 2 a 8 de Outubro de 2006
Voltamos ao “Círculo do Humanismo Cristão” da Moraes, desta vez para falar, na semana em que se assinala o dia do Santo de Assis (4 de Outubro), de “Fioretti de S. Francisco e dos Seus Frades” (1960, tradução de Maria Luísa Carbonati e Maria Isabel Tamen, revista e prefaciada por Pedro Tamen, com dez desenhos de José Escada). O livro é uma referência da história editorial portuguesa do século XX, pela qualidade literária, pelo cuidado extremo posto na edição e pelos belíssimos desenhos de Escada. Com simplicidade franciscana, demonstra-se aqui que as melhores edições não precisam de ser caras e sofisticadas. O bom gosto nota-se nos pormenores. A obra foi escrita por um tal Frei Hugolino do Monte de Santa Maria e por um seguidor anónimo e recolhe da tradição oral alguns episódios não constantes das crónicas oficiais, misturando facto e lenda. E assim temos toda a “maravilhosa lição de S. Francisco: a pobreza, a caridade, a simplicidade, o espírito de infância, o amor ao real concreto e próximo, concebido como dádiva do Criador e prolongamento da Cruz” (P. Tamen). Francisco reedita os passos de Cristo, actualiza-os e procura dar nova vida à Boa Nova – quando passa “uma Quaresma numa ilha ao largo de Perugia, onde jejuou quarenta dias e quarenta noites e não comeu mais que meio pão”, quando “estando a falar de Deus com os seus irmãos, este apareceu no meio deles”, quando pregou às aves e aquietou as andorinhas, quando converteu o ferocíssimo lobo de Gubbio ou quando “sarou milagrosamente um leproso de alma e de corpo, e do que a alma dele lhe disse ao ir para o céu”. Com enorme serenidade e uma fé intensa, Francisco e os seus frades dão um testemunho original e impensável – abrindo a lei do amor, estendendo-a, alargando-a, ligando-a à natureza, à aventura do inesperado e à descoberta do próximo, amigo e inimigo, incómodo, inesperado e desconhecido. Se disseres que amas a Deus e não amares o teu irmão mentes? E onde está esse meu irmão. Francisco ensinou que está onde menos se espera, passa despercebido, anda escondido, sobretudo da nossa vaidade. E “os primeiros companheiros de S. Francisco empenhavam-se, com todo o seu ardor, em serem pobres de coisas terrenas e ricos de virtudes, pelas quais se chega às verdadeiras riquezas celestes e eternas”. E por isso aquele rico e nobre gentil-homem disse perante o Santo: “Que mandas tu que eu faça, meu pai? Eis que estou preparado para, a ordem tua, dar aos pobres o que possuo e contigo seguir a Cristo, assim despojado de todas as coisas do mundo”. Veja-se o exemplo magnífico de sabedoria de António de Lisboa – “verdadeiramente arca do Testamento e armário da divina Escritura”, “vaso do Espírito Santo” (“Não é de Espanha este que prega? Como, pois, cada um de nós o ouve falar na língua das nossas terras?”). E, um dia, estando em Rimini, perante a indiferença de muitas, foi até à foz do rio, perto do mar e começou a dizer aos peixes da parte de Deus, à maneira de pregação: “Ouvi a palavra de Deus, vós, peixes do mar e do rio, visto que os hereges infiéis fogem de a ouvir”… De S. Francisco voltamos, afinal, a ouvir: “Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa morte corporal / a que vivente algum pode escapar; / ai dos que morrerem em pecado mortal, / benditos os que forem achados na sua santíssima vontade / porque a segunda morte lhes não fará mal”…
Guilherme d’Oliveira Martins