A Vida dos Livros

UM LIVRO POR SEMANA

“Um Herói Português – Henrique de Paiva Couceiro (1861-1944)” de Vasco Pulido Valente (Aletheia Editores, 2006) constitui uma excelente oportunidade para conhecermos quase um século da vida portuguesa. Analisar a personalidade de quem teve um percurso singularíssimo de desencontros vários com a História permite tentar perceber o porquê da crise que conduziu ao fim da monarquia constitucional e às dificuldades que se seguiram.

UM LIVRO POR SEMANA
De 25 de Setembro a 1 de Outubro de 2006


“Um Herói Português – Henrique de Paiva Couceiro (1861-1944)” de Vasco Pulido Valente (Aletheia Editores, 2006) constitui uma excelente oportunidade para conhecermos quase um século da vida portuguesa. Analisar a personalidade de quem teve um percurso singularíssimo de desencontros vários com a História permite tentar perceber o porquê da crise que conduziu ao fim da monarquia constitucional e às dificuldades que se seguiram. Como tem afirmado o autor, Paiva Couceiro faz parte de uma trilogia de figuras conservadoras que não conseguiram realizar os projectos que alimentaram. Além do biografado, VPV tem referido os exemplos de João Franco e de Marcelo Caetano. Sobre o primeiro escreveu Rui Ramos, e sobre o segundo, o próprio tem um ensaio, há dias acrescentado. Mais do que uma descrição de vida, temos um percurso político desenhado a traço forte. Henrique Mitchell de Paiva Couceiro era filho de uma senhora inglesa, convertida ao catolicismo, professora de inglês das filhas da viscondessa de Torrão, e de um oficial de engenharia. Esta união definiu a austeridade da sua vida de “guerreiro e monge”, feita de religiosidade extrema (que levava a família a designá-lo “amigavelmente” de “jansenista”) e de um culto exacerbado da honra e das virtudes militares. “Homem de outros tempos” – assim foi conhecido pelos contemporâneos, que, no fundo, o respeitavam. A força do carácter, mais do que a inteligência, era o que o marcava – “alma de místico” (Raul Brandão), símbolo de “ordem moral” (Fernando Amado). O “sangue quente” que levaria a ser julgado em conselho de guerra e preso, com apenas 19 anos, por ter atingido a tiro um indivíduo que o teria insultado no Chiado não voltaria manchar a sua carreira. Em 1889 foi para África com o sonho heróico do império. Em Angola participou na tentativa do mapa-cor-de-rosa, sofreu a desilusão e a repulsa pelo ultimato inglês, trabalhou intensamente em condições adversas e conheceu o terreno. Regressado ao continente, António Enes designou-o como ajudante de campo, enquanto comissário régio em Moçambique. Quando os ingleses faziam crer que os portugueses eram incapazes de se bater e de defender os territórios que diziam controlar, Couceiro fez questão de demonstrar o contrário, num grupo de militares de eleição. Marracuene começou a desmentir que os portugueses fossem “galinhas”. Em Magul teve papel decisivo para que a supremacia militar sobre os vátuas ficasse definida. Regressado à Europa, em 1896, aproximou-se da política de João Franco. Foi incómodo. E em 1906 Aires de Ornelas nomeou-o para governador-geral interino de Angola, onde desempenhou um excelente lugar. Ocupar o território e desenvolvê-lo foi o seu programa (que depois Norton de Matos elogiou). Em Junho de 1909, Couceiro saiu de Angola, com o regime a dar as últimas. Defendeu mudanças que permitiriam varrer a corrupção e a incompetência. Mas era tarde demais. E o “artilheiro andante” foi um dos únicos a bater-se contra a revolução republicana de 1910, sem o mínimo de condições. Perante a sua galharda atitude, os republicanos ainda tentaram estender-lhe a mão, mas ele recusou. E a radicalização da República levou este “paladino” à conspiração e ao combate. As novas instituições temiam-no. Foi para a Galiza e procurou aproveitar o descontentamento popular, mas não tinha força real. A história é conhecida. Com os aristocratas exilados (os “pinocas”) e poucos militares conduziu as incursões monárquicas. Uma aventura em 1911. Uma tragédia em 1912 – bem evidente no desastre de Chaves. Foram gestos quixotescos e impensáveis. O próprio rei no exílio demarcou-se. Couceiro é acusado de precipitação. Começam as divisões e as desinteligências. A “causa dos paivantes” não encontra adeptos no interior. Paiva Couceiro exila-se no sul de França. Acompanha a evolução política de longe (1913 e Pimenta de Castro). Com Sidónio, volta ao país, ressalvando as distâncias. E depois do assassinato do novo Presidente, tenta ocupar o vazio deixado, mas depara com o calculismo dos seus potenciais aliados que o consideram incómodo. Mesmo assim, avança em Janeiro de 1919, com o estranho beneplácito do lugar-tenente do rei, Aires de Ornelas. São os 25 dias da Monarquia do Norte, no Porto, no Minho, em parte de Trás-os-Montes e da Beira Alta. Coimbra e Aveiro não aderiram e “no resto do país ninguém se mexeu”. O episódio de Monsanto não chegou a incomodar Lisboa. Tudo voltou a correr mal. Couceiro chegou mesmo a ser visto como traidor e pião de um complot espanhol. Era o canto do cisne. Passou então a ser uma sombra de si mesmo, preocupado com o futuro do império, e em especial de Angola. Então, acusa Salazar de ser cúmplice de um suposto separatismo angolano. O facto levá-lo-á à prisão em 1937 e ao desterro em Espanha, por entre acusações torpes… Morreria em Portugal, com a tragédia da guerra em fundo. O livro retrata alguém de um tempo que não volta, e lê-se de um fôlego…


Guilherme d’Oliveira Martins

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