UM LIVRO POR SEMANA
De 4 a 10 de Setembro de 2006
“Stuart – A Rua e o Riso” de João Paulo Cotrim (Assírio & Alvim – El Corte Inglés) é uma obra imprescindível para quem queira conhecer a personalidade multifacetada de Stuart de Carvalhais (1887-1961), intérprete fidelíssimo, através do desenho, do país e da época em que viveu. O autor começa por dizer que “Stuart continua a ser uma nuvem na paisagem artística nacional”. Nuvem, certamente de um sonhador que sempre foi, mesmo sem querer, ou de um fumador inveterado (“é ver as nuvens de fumo subir, assim como os meus sonhos, que há muito se dissiparam”). J.P. Cotrim esclarece: “A nuvem tombou nevoeiro para preencher ruelas e avenidas, cafés e teatros, a noite mundana e a madrugada pobre ou criminosa. Talvez a névoa desfoque, desfaça o vulto na esquina, mas desperta a adrenalina do imprevisto”… Stuart foi um caricaturista único, como os melhores – e “fez humor mais do que crítica”. Esteve no Salão de Humoristas de 1912 – e logo nesse momento singularizou-se pela identidade do seu traço, que a pouco e pouco se tornou inimitável. Tinha o “povo no bico do lápis”… “Personalidade inconfundível” – assim o qualificou o melhor cronista lisboeta do tempo, Luís de Oliveira Guimarães. Foi um boémio incorrigível, desconcertante, e a sua própria vida foi-se confundindo com o mundo que desenhou livremente, a cidade e as pessoas, que conhecia como as suas próprias mãos. Era essa a sua família. Mas não se levava a sério, o que foi um dos sinais do seu génio. “Artista? Mas ser artista é ter talento, possuir garra, ser condecorado… Eu não, eu nunca pintei nada… Faço bonecos. Para distrair a fome… Artistas são os outros…”. Aquilino, seu amigo, faz-lhe o retrato: “Stuart era um rebelde; mais do que isso, por baixo do seu desmancho de boémio havia um revolucionário, muito senhor de si, aliás, isto é, a rebeldia consciente, para lá de inorgânica”. Era, no fundo, um anarquista de rua. Em “tudo pelo bem do povo”, uma tira cómica publicada no “Diário de Lisboa” (1922), alguém começa magro e franzino, com remendos nas mangas, depois vem o 5 de Outubro, a guerra, o sidonismo e esse alguém torna-se gordo e anafado. E conclui, ufano: “Se vem mais uma, rebento”. Cada um dos seus desenhos tem a marca do talento, mesmo quando se nota a urgência da necessidade. Grafite, pau de fósforo, tinta-da-china… “Tinta cenográfica, grude e talento em partes iguais” – dirá o seu colega Francisco Valença. São suas as capas de obras de consagrados (como Aquilino, Raul Brandão, Ferreira de Castro, Júlio Dantas), ao lado de autores menores… Mas a força está lá, por cima da emergência. O repentismo e a ilustração dos tipos populares de Lisboa é que tornam Stuart imortal, e esta palavra ganha um especial significado, sabendo-se que o desenhador cultivava deliberadamente o efémero… Nos quadradinhos, há pano para mangas, com a deliciosa companhia de Quim e Manecas (e ainda de João Manuel, um pequeno traquinas, de carne e osso) na frente de uma galeria pioneira de aventuras e desventuras feitas de mil partidas. “Tudo, verdadeiramente tudo lhes foi permitido, até a ternuras. (…) Pregar partidas era a filosofia de vida stuartista”. E este livro demonstra-o!