UM LIVRO POR SEMANA
De 1 a 7 de Maio de 2006
As guerras matam e dilaceram as sociedades. Suscitam situações limite. Leão Tolstoi em “Guerra e Paz” (tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Presença, 2005) analisa o fenómeno de um modo único. A vida e a morte coexistem em cada momento, o heroísmo e a cobardia confundem-se, o instinto de sobrevivência mistura-se com a racionalidade. Tolstoi compreendeu que apenas poderia dar uma imagem da sociedade ameaçada, num combate de vida ou de morte… “O historiador apenas se ocupa do resultado adquirido, o artista ocupa-se do facto em si mesmo”. A vontade e o destino, a liberdade e a necessidade lutam entre si. O General Inverno soma a sua força ao método da terra queimada. E o czar Alexandre torna-se o braço da Providência. O príncipe André Bolkonski, desaparecido em Austerlitz, morre na sequência de Borodino. Será o símbolo heróico e trágico. O conde Pedro assume todas as dúvidas e contradições da transição e casa com Natasha, símbolo da vida – que encontrara e perdera o amor na pessoa de André. Os ideais da revolução francesa confrontam-se com a sociedade tradicional russa. E prevalece a voz da terra e do sangue. Borodino é o canto do cisne para o Imperador Bonaparte. Napoleão encontra o começo do seu fim nas cidades e nas estepes da Rússia e no combate contra poderosos fantasmas. O destino e a vontade encontram-se e desencontram-se. “O acto humano aparece-nos como uma mistura de liberdade e de necessidade”. Fatalidade? Tolstoi considera ser esta lei da história humana. “A história não tem por objecto a vontade do homem, mas a ideia que fazemos dela”. O conde Pedro começa por acreditar na força da liberdade humana, genuinamente, mas o tempo vai levá-lo a desenganar-se. E esse percurso é comum ao do Conde de Tolstoi, que fala da lei psicológica, “que compele o homem que realiza o acto menos livre possível a imaginar imediatamente toda uma série de deduções retrospectivas destinadas a provar a si próprio que é livre”. No fundo, Tolstoi não se limita a relatar-nos um acontecimento romanesco. Dentro de uns séculos, talvez se leia “Guerra e Paz” como “A História da Guerra do Peloponeso” de Tucídides. Mas faltará a paixão que ainda hoje sentimos por Natasha, quando ansiamos pelo seu reencontro com André, já no leito de morte, na presença silenciosa da princesa Maria… “A inteligência humana não compreende a continuidade absoluta do movimento” – diz-nos Tolstoi. “Enquanto Aquiles percorre a distância que o separa da tartaruga, esta ter-se-lhe-á adiantado a décima parte desse espaço e quando Aquiles tiver percorrido essa décima parte, a tartaruga ter-se-lhe-á adiantado a centésima e assim por diante até ao infinito”. O conde Pedro nunca renuncia a procurar uma explicação para tudo, quer ver com olhos de ver, compreende a importância das contradições e das perguntas sem resposta, a sua aparente distracção significa essa procura. Trata-se de distinguir o percurso do ponteiro do meu relógio e o badalar dos sinos da igreja vizinha – são fenómenos distintos, ainda que sincrónicos. O movimento não sofre interrupção e a História tem de compreender a que leis obedece tal movimento… Rostov, Bezukov, Bolkonski tecem as teias em que o imperador, o czar e os seus estados-maiores vão agir, julgando que têm liberdade plena e capacidade para contrariar a necessidade, sem as terem, verdadeiramente. “O poder não é mais do que uma palavra, cujo significado nos é desconhecido”. [Nota – Com base em versões francesas, José Marinho, ed. Inquérito, e João Gaspar Simões com Isabel da Nóbrega, Publicações Europa-América, são autores de traduções do romance de Tolstoi].
Guilherme d’Oliveira Martins