UM LIVRO POR SEMANA
De 6 a 12 de Fevereiro de 2006
A nova colecção “Teofanias” revela-nos um surpreendente testemunho de procura sobre o sentido da vida. “Os Imperdoáveis” (Assírio & Alvim, 2005) de Cristina Campo é uma obra fundamental. E devemos a José Tolentino Mendonça e à tradução de grande qualidade da autoria de José Colaço Barreiros este feliz encontro. Cristina Campo é o pseudónimo da escritora italiana Vitoria Guerrini (1923-1977) e os ensaios reunidos neste livro revelam a intensidade e a irrequietude de alguém que procurou afrontar os limites e a força da perfeição, da beleza, da arte, da poesia, do sagrado e da santidade. Como salientou João Bénard da Costa em dois textos luminosos sobre Cristina Campo e como refere J. Tolentino Mendonça no prefácio da obra, começamos por presenciar um encontro singular com Simone Weil (de quem a nova colecção publicou “Espera de Deus”) e é a partir dessa referência conhecida que podemos acompanhar um espraiar fantástico e incómodo por um conjunto de temas e pessoas (desde as “Mil e Uma Noites” a Hoffmannstahl, Proust, Pound e Borges) que não nos deixam indiferentes e levam-nos a admirar o talento e a espiritualidade de uma autora que se revela em todo o seu esplendor quase trinta anos depois da sua morte prematura. E vemos que Cristina Campo cultiva o equilíbrio da forma, a inteligência das palavras e das ideias e fala de transcendência, de perfeição, de atenção, de espera ou de perda. Mas não estamos perante uma autora fácil. O paradoxo e o excesso encontram-se nesta admiradora dos padres do deserto ou dos grandes místicos, como S. João da Cruz. “A atenção é o único caminho para o inexprimível, a única estrada para o mistério”. Em cada tema, sobre cada autor, a escritora procura ir mais além do que seria previsível, e não se deixa arrastar pelas vozes do mundo ou pelo “espírito do tempo”. Lembremo-nos, aquando do Concílio, da sua defesa do canto gregoriano, da luta pela manutenção do latim como língua litúrgica e do manifesto que assinou, a esse propósito, com Bresson, Green, Chirico, Maritain e Maria Zambrano. E se Simone Weil está bem presente na reflexão de Cristina Campo, notam-se também preocupações comuns com a obra de Maria Zambrano. Simone Weil é uma referência inicial, mas Cristina Campo afasta-se da atitude da autora de “Espera de Deus”. E aponta-lhe a falta de não ter ido ao encontro da tradição e das raízes cristãs – falando de uma “pré-convertida”, algo distante da essência teológica da relação com Deus. Nesse ponto aproxima-se da crítica que Evelyn Waugh fez a Simone Weil num ensaio de 1952 em que enaltecia a obra da filósofa de origem judaica, discípula de Husserl, Edith Stein, morta num campo de concentração nazi e hoje Santa Teresa Benedita da Cruz. Cristina Campo escreve intensamente, procura sem descanso, mas não facilita as diligências, a cada passo exige mais um obstáculo a superar, mais um limite a ter em conta. E conquista-nos.
Guilherme d’Oliveira Martins