UM LIVRO POR SEMANA
De 26 de Dezembro de 2005 a 1 de Janeiro de 2006
Em «A Construção de Jesus – Uma Leitura Narrativa de Lc. 7, 36-50» (Assírio e Alvim, 2004) de José Tolentino Mendonça, encontramos uma análise muito interessante e rica, que se projecta muito para além de um domínio estrito do saber. Está em causa o episódio do banquete em casa do fariseu, em que Jesus é ungido por uma mulher tida na cidade como pecadora. Num tempo em que na literatura assistimos ao regresso da narrativa, verificamos que esta obra está no cerne da reflexão contemporânea sobre as relações entre a narração e a vida. E temos de recordar, a propósito, os textos de Harald Weinrich e de Johann Baptist Metz publicados pela revista «Concilium», no já distante ano de 1973, sobre o tema da «Teologia Narrativa». Enquanto o primeiro afirmava que as «narrações têm em vista, não o sim ou o não da verdade, mas o mais ou menos da relevância», o segundo punha a tónica na memória e afirmava que «o cristianismo, enquanto comunidade dos crentes em Jesus Cristo é, desde o início e originariamente, não uma comunidade de interpretação ou de argumentação, mas uma comunidade de memória e de narração, com intenção prática: memória narrativa-desafiante da paixão, da morte e da ressurreição de Jesus». «Por que existem as histórias? Por que resistem elas ao inelutável manto do esquecimento? Que poder é o seu? Por que nos atraem, por que tornamos a elas, mesmo quando séculos se somaram a outros séculos, e o mundo que as gerou nos aparece enigmático, secreto, distante? Que trânsito nos traz assim suspensos: apenas um comércio de artifício, que as frágeis histórias encenam, ou o tráfico impalpável, mas presente da própria verdade? Por que contou Jesus histórias? Por que as contamos nós para dizer Jesus?». Com estas perguntas J. Tolentino Mendonça põe-se na encruzilhada da modernidade e da pós-modernidade – entre a importância da narrativa e a busca da verdade e de sentidos para a existência humana. E a «verdade» procura uma «respiração narrativa». E o «raconto» leva ao compromisso pessoal e ao «envolvimento», com uma história que nos diz respeito… As histórias existem para melhor nos compreendermos e compreendermos a realidade que nos cerca e os outros. E a pós-modernidade leva-nos, assim, a ter de entender a diversidade – ora como heterogeneidade («sem possibilidade de interacção entre regiões plurais») em J.F. Lyotard, ora como pluralidade legítima no interior de uma razão unitária (não metafísica) em J. Habermas, passando pelo pensamento débil de Gianni Vattimo e pela ironia de Richard Rorty. Pluralidade, descontinuidade, antagonismo, particularismo entram na ordem do dia. Mas haverá uma pós-modernidade, por contraponto à modernidade, herdada desde o Renascimento? Ou haverá apenas uma nova fase da modernidade, de que continuamos a fazer parte? O que se passa no tempo actual? Muitas vezes a pluralidade surge como sinónimo de indiferença. Gellner põe-nos de sobreaviso: o relativismo é que dá apoio ao absolutismo dos outros. Por isso, o hermeneuta contemporâneo deverá ter mil cautelas, para que a tolerância própria não redunde em destruição do respeito mútuo de todos. Poderemos ser tolerantes com a intolerância? Olhe-se o que acontece com a escalada dos fundamentalismos. Impõe-se superar quer o relativismo quer o absolutismo. Temos de dar à razão um lugar equilibrado e aberto, capaz de se ligar à emoção e aos afectos, à fé e à convicção, naquilo que Carlos H. do Carmo Silva designa como «inteligência cordial».
Guilherme d’Oliveira Martins