UM LIVRO POR SEMANA
De 8 a 14 de Outubro de 2007
Marsilio Cassotti escreveu “Infantas de Portugal Rainhas em Espanha” (A Esfera dos Livros, 2007), que permite seguir o percurso bem diferenciado de onze personalidades, descendentes de reis de Portugal, chamadas ao trono de Castela ou de Espanha. Na capa temos, como seria de esperar, o retrato póstumo que Ticiano pintou a pedido do Imperador Carlos V (Carlos I de Espanha) de sua mulher D. Isabel de Portugal, a mais bela e influente rainha da cristandade, mãe do nosso rei D. Filipe I e filha de D. Manuel I. O Imperador enamorou-se dela mal a viu, diz a tradição, e definiu para ela o maior dote que uma princesa jamais havia tido. A obra de Ticiano, que o Museu do Prado alberga, evidencia a beleza, a personalidade forte da rainha, mas também a sua doçura, de que fala o extraordinário poema de Sophia de Mello Breyner “Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal” (“Nunca mais /A tua face será pura limpa e viva /Nem teu andar como onda fugitiva /Se poderá nos passos do tempo tecer. /E nunca mais darei ao tempo a minha vida”). Morta de parto com 36 anos incompletos, foi chamada, pelas longas ausências de seu marido, à difícil função de governar e à dureza de ter de sofrer só diversos desgostos. Mas Carlos tinha confiança plena na Imperatriz, considerando-a “ajudadora” no “conhecimento das difíceis tarefas de governo” pelo “crescente e tenaz empenho dela para estar à altura das circunstâncias”. E não pode deixar de se referir a fortíssima ligação da mãe com o jovem Filipe, com quem falava português, e que desde cedo foi marcado por um afecto especial pelas coisas portuguesas. Carlos V nunca mais seria o mesmo depois da inesperada morte de Isabel, fosse por remorso, fosse por saudade, o certo é que sentiu para sempre esse amor e essa ausência. “Viúvo aos trinta e nove anos e com um único filho varão como herdeiro de tão vasto império, jamais Carlos de Áustria, rei de Espanha e Imperador da Alemanha, voltaria a casar. Talvez (diz o autor), de uma distância já impossível de encurtar, a discreta imperatriz continuasse a exercer a sua subtil influência”. E a verdade é que a personalidade forte de Isabel marcaria indelevelmente o futuro rei de Portugal, em especial com “aquela inclinação não só para se sobrepor aos efeitos da vida, mas também a velá-los com a máscara de uma fria e nobre reserva”. O autor é um estudioso da história diplomática, por isso se compreende que desenvolva o seu livro na perspectiva das relações políticas entre reinos e na procura da melhor compreensão do tempo de cada uma das personagens estudadas. Longe, porém, dos excessos eruditos, Cassotti expõe as suas ideias de modo acessível, sem sacrificar o rigor e a complexidade dos factos históricos, o que lhe permite atrair diversos tipos de leitores, desde os possuidores de conhecimentos históricos até ao público em geral, sem grandes exigências. E o resultado é positivo, uma vez que consegue prender a atenção e ter uma função pedagógica. É que, ao estudar a vida de quem se moveu entre Portugal e Espanha, lança-se uma outra forma de ver a relação, naturalmente tensa e concorrencial, entre os dois povos irmãos – e chega-se à conclusão de que, apesar das aparências, a proximidade ou o paralelismo histórico é muito maior do que à primeira vista pode parecer. E, no início do reino, quando os casamentos dinásticos tinham grande importância na consolidação dos Estados, o vínculo preferencial de vassalagem à Santa Sé teve o efeito dramático da separação matrimonial imposta pelo Pontífice de Roma por violação do Código de Graciano, que vigorou a partir de 1140, e que proibia a união entre parentes consanguíneos até ao sétimo grau, o que, na prática, tornava impossível os casamentos entre membros das casas reais de Portugal e de Leão e Castela. Tal aconteceu com D. Urraca, filha de D. Afonso Henriques, casada com Fernando II de Leão (filho de Afonso Raimundes) e mãe de Afonso IX; com D. Teresa, filha de D. Sancho I e mulher do já referido Afonso IX; e com D. Mafalda, filha de D. Sancho I e mulher de Henrique I de Castela. Essa proibição viria a ser atenuada pelo Concílio de Latrão de 1215, passando a referir-se apenas ao 4º grau. A partir de então nenhuma infanta portuguesa se viu humilhada pelo regresso ao reino por ordem papal, em prejuízo dos interesses diplomáticos… D. Constança, filha de D. Dinis, foi casada com Fernando IV e esteve intimamente ligada ao estabelecimento da fronteira mais antiga da Europa em Alcanises, tendo morrido amargurada com apenas 23 anos a defender a restituição de seu filho, o futuro rei Afonso XI. Seguir o percurso de D. Maria, filha de D. Afonso IV, mulher de Afonso XI e mãe de Pedro I, o Cruel; de D. Beatriz, filha de D. Fernando e mulher de D. João I de Castela ou de D. Isabel, neta de D. João I, bisneta do Condestável, mãe de Isabel, a Católica, a quem transmitiu a ideia expansionista dos avós, é estudar, em pormenor, as vicissitudes peninsulares desse tempo, na consolidação da independência dos reinos, no desenvolvimento da crise de 1383-85, na difícil disputa da sucessão em Castela e na afirmação do domínio dos mares primeiro por Portugal e depois por Espanha. D. Joana, filha de D. Duarte, mulher de Henrique IV e mãe da “Excelente Senhora”, homónima da mãe, e que viria a ser vítima das infidelidades conjugais desta, num processo atribuladíssimo em que D. Afonso V se empenhou sem grande sucesso. Aliás, a fúria da nobreza contra D. Joana foi tal que ainda hoje não conhecemos a face da rainha, que os contemporâneos dizem ter sido de grande beleza, e cujos traços talvez possamos encontrar em Santa Joana Princesa, sobrinha da infanta caída em desgraça. Depois de Isabel de Portugal e da crise dinástica de 1580, vários séculos passariam até que a filha de D. João V e de D. Maria Ana de Áustria, D. Bárbara de Bragança, discípula de Scarlatti, se casasse com o Príncipe das Astúrias, Fernando VI, e até que, pouco depois, D. Maria Isabel, a fundadora do Museu do Prado, casasse com Fernando VII. Em suma, uma obra atraente, útil e pedagógica.
Guilherme d’Oliveira Martins