James Joyce (1882-1941) publicou em 1922, “Ulisses”, procurando seguir o caminho do herói homérico da guerra de Troia, na sua cidade de Dublin. Ligou assim esse relato épico à vida de hoje numa articulação bizarra entre uma deambulação citadina e os pensamentos que vão assaltando os protagonistas do romance. Longe da sua cidade, Joyce escreve em Trieste, em Itália, embrenhando-se completamente na recordação de Dublin. Aliás, em 1914, escrevera “Gente de Dublin” (“Dubliners”) que constitui não um prenúncio, mas um pano de fundo para “Ulisses”. Lembrado da versão juvenil da “Odisseia” que lera na infância, Joyce vai escolher o dia 16 de junho de 1904 para situar a sua viagem iniciática, em que simbolicamente reconstitui os momentos vividos por Ulisses no poema de Homero. Esse foi o dia em que fez primeiro amor com Nora Barnacle, sua companheira de vida, mas também o dia em que imagina a viagem de Leopold Bloom, figura inspirada num amigo de seu pai, Alfred Hunter, um judeu irlandês que o salva numa briga noturna no submundo da cidade de Dublin. Pouco depois, James Joyce fugirá com Nora para a Croácia e depois para Trieste e aí será professor de inglês… Em 1905 e 1907 nascem os seus dois filhos: Giorgio e Lúcia. Reflete profundamente sobre a criação literária, e tanto se inspira na poesia elisabetiana e em Shakespeare como procura imagens quotidianas e inesperadas, às vezes chocantes para a mentalidade da época – junta arcaísmos e neologismos…
O início da primeira guerra mundial leva o casal James e Nora para a neutral Suíça, onde se fixam em Zurique. Ezra Pound entusiasma-se pela obra e originalidade de Joyce. Há que seguir as virtualidades da intertextualidade… A ideia de “Ulisses” surge em 1906, quando, ao terminar “Gente de Dublin”, pensa num conto sobre um negociante de anúncios judeu chamado Leopold Bloom. A história não foi escrita, mas a ideia germinou. Em 1914 Joyce começou a trabalhá-la sob a inspiração da “Odisseia”, terminando a obra em 1921. É um texto experimental, do que Pound designa como “imagismo”, que começa a ser publicado em “The Little Review” em 1918. No entanto, os editores norte-americanos serão condenados em 1920 por publicar supostas obscenidades. E a obra é proibida até 1933. Contudo, graças à editora de Paris “Shakespeare & Co”, de Sylvia Beach, o livro é dado à estampa em 1922. Mas as censuras norte-americana e britânica levam à confiscação e destruição de 500 exemplares e à queima de livros na Alfândega inglesa de Folkestone. O livro proscrito torna-se então um ícone do modernismo de língua inglesa – ao lado do poema “The Waste Land” de T. S. Eliot. Ulisses (Odisseu), Penélope e Telémaco são Leopold Bloom, Molly Bloom e Stephen Dedalus – que parodiam o original misturando consciência e ironia.
Passo a passo, descobrimos Dublin, nos seus aspetos sombrios e iluminados. São dezoito capítulos, que não podem ser resumidos, cada um cobrindo uma hora do dia, a começar às 8 da manhã e a acabar às duas da madrugada. Telemaco, Nestor, Proteu, Calipso, Lotófagos, Hades, Éolo, Lestrigões, Cila e Caribdis, Rochas Errantes, Sereias, Ciclopes, Nausicaa, Gado do Sol, Circe, Eumeu, Ítaca e Penélope… Só a leitura atenta permitirá entender Joyce… É como se visitássemos a cidade, não com um GPS, mas através de um caleidoscópio, que se encontra na consciência das diversas personagens. Essa a grande originalidade de um livro único e inesgotável… Depois, virá “Finnegans Wake” (1939) e não compreenderemos Godot de Samuel Beckett sem entrarmos neste universo…
Agostinho de Morais