A Vida dos Livros

Cardeal D. José Tolentino Mendonça no dia de Portugal

A intervenção do Cardeal D. José Tolentino Mendonça no dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, no Mosteiro dos Jerónimos, merece uma leitura muito atenta e uma reflexão séria.

RECUSAR A IDOLATRIA DO TER
Como poderemos entender quem somos, de onde vimos, para onde vamos, sem compreender as raízes, a comunidade, as pessoas, o encontro das várias gerações, o enriquecimento mútuo das experiências e dos exemplos, a atenção e o cuidado com os outros e com o que nos cerca, a troca das aprendizagens, a dignidade do ser e a recusa da idolatria do ter? No recente discurso proferido por ocasião do dia de Portugal, a convite do Presidente da República, o Cardeal D. José Tolentino Mendonça recordou um ensaio de Simone Weil “destinado a inspirar o renascimento da Europa sob os escombros da Segunda Guerra”, onde afirma que “um país pode ser amado por duas razões, e estas constituem, na verdade, dois amores distintos. Podemos amar um país idealmente emoldurando-o para que permaneça fixo numa imagem de glória, e desejando quer esta não se modifique jamais. Ou podemos amar um país como algo que, precisamente por estar colocado dentro da história, sujeito aos seus solavancos, está exposto a tantos riscos. São dois amores diferentes. Podemos amar pela força ou amar pela fragilidade. Mas, explica Simone Weil, quando é o reconhecimento da fragilidade a inflamar o nosso amor, a chama desta é muito mais pura”. E aqui está a raiz do patriotismo e a diferença relativamente aos nacionalismos. Também Eduardo Lourenço tem insistido neste ponto, afirmando que mais do que a glória passada, importa considerar que, cada um, não sendo nem melhor nem pior do que outros, tem o dever de partir da imperfeição para o desafio emancipador e de superação das dificuldades (cf. Portugal como Destino). O amor do país, como patriotismo prospetivo, obriga, assim, à compaixão, como exercício efetivo de fraternidade (cuja importância Marcuse reconheceu a Habermas no leito de morte). Com base na compaixão é que importa ligar as raízes à vivência da comunidade. E a comunidade associa etimologicamente os dois termos latinos cum e munus. Trata-se de ligar um dever comum (munus) a uma tarefa partilhada. Nestes tempos de pandemia fica assim lembrada a primeira tarefa de uma comunidade: cuidar da vida. “Não há missão mais grandiosa, mais humilde, mais criativa e mais atual”. E Camões é recordado por Tolentino Mendonça – na referência à tempestade, que invoca a ideia de vulnerabilidade, “com a qual temos sempre de fazer conta”, já que as “raízes, que julgamos inabaláveis, são também frágeis, sofrem os efeitos da turbulência da máquina do mundo”. De facto, não há super-homens nem super-países, todos temos as nossas forças e as nossas feridas. E o certo é que a raiz da civilização é a comunidade.

O CERNE DO CONCEITO DE PATRIMÓNIO
Estamos no cerne da noção de património cultural, como realidade viva, por cuja defesa o diretor do Arquivo e Biblioteca do Vaticano foi reconhecido na atribuição do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva 2020, da Europa Nostra, Centro Nacional de Cultura e Fundação Calouste Gulbenkian. Como salientou a esse propósito José Tolentino Mendonça, “a cidadania europeia é também uma cidadania cultural. E esta liga-se ao tesouro da memória, à pluralidade das tradições e raízes, que através das gerações alicerçam uma identidade e um quadro de valores onde nos reconhecemos. E desafia-nos a não fechar o património cultural no passado. O património cultural é um motor indiscutível do presente e só com ele podemos pensar que há futuro”. E, como disse Agostinho de Hipona, os tempos são três: “o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas futuras”. Essa tripla dimensão liga-nos às marcas da história. Daí que o prémio ponha a tónica no património como realidade viva e permanente, material e imaterial, natural e paisagístico, digital ou criação contemporânea, tendo sido anteriormente outorgado a Claudio Magris, Orhan Pamuk, Jordi Savall, Pantu, Eduardo Lourenço, Wim Wenders, Bettany Hughes e Fabiola Gianotti – e agora o júri afirmou-se impressionado com a capacidade que o premiado demonstra ao divulgar a Beleza e a Poesia como parte do património intangível da Europa e do mundo. “Queremos homenagear a sua arte de comunicar não apenas através da sua notável poesia, mas também dos seus artigos de opinião publicados na imprensa portuguesa e italiana. Hoje, quando a Europa e o mundo se confrontam com uma crise sem precedentes, precisamos de ouvir as vozes desafiadoras dos principais intelectuais e artistas”. No discurso dos Jerónimos, o Cardeal lembrou que as tempestades põem a céu aberto as nossas raízes. Daí que devamos construir um pacto comunitário que obrigue a robustecer um pacto intergeracional. Temos de pensar em quem nos antecedeu e em quem nos seguirá. “O pior que nos poderia acontecer seria arrumarmos a sociedade em faixas etárias, resignando-nos a uma visão desagregada e desigual, como se não fossemos a cada momento um todo inseparável: velhos e jovens, reformados e jovens à procura do primeiro emprego, avós e netos, crianças e adultos no auge do seu percurso laboral. Precisamos, por isso, de uma visão mais inclusiva do contributo das diversas gerações. É um erro pensar representar uma geração como um peso, pois não poderíamos viver uns sem os outros”. A aprendizagem é sempre partilha e troca e não podemos dispensar ninguém. E o orador recordou a sabedoria de sua avó, a comunicar, como os antigos aedos, a sabedoria ancestral dos cancioneiros e das tradições.

A ESSÊNCIA DA TRANSMISSÃO
A transmissão dos conhecimentos, como aconteceu com os poemas celebrizados por Homero, faz-se de geração em geração, não podendo ser perdida essa extraordinária capacidade renovadora. E o poeta recordou a antropóloga Margaret Mead a dizer, para surpresa dos seus interlocutores, que o primeiro sinal de civilização, não foi a pedra de amolar ou os recipientes de barro, mas um fémur quebrado e cicatrizado… Uma pessoa não foi deixada para trás sozinha”. Alguém a acompanhou na sua fragilidade, cuidou dela até que recuperasse e continuasse a ser útil. E, regressando ao canto VI de “Os Lusíadas”, disse-nos que “a tempestade não suspendeu a viagem, mas ofereceu a oportunidade para redescobrir o que significa estarmos no mesmo barco”. Afinal, Camões, poeta maior e símbolo de todos nós, invoca um país em viagem e foi mais longe, representando o país como viagem. E não nos ensinou ainda Eduardo Lourenço, que mais importante que o destino é a viagem? Esta a nossa marca! Como explica o poeta, ilhéu da Madeira, que não fora a pandemia deveria ter usado da palavra em cerimónia na sua terra natal, esta noção de viagem, ao encontro dos outros e de nós mesmos, torna-se uma espécie de “rasto de fulgor”, parafraseando Maria Gabriela Llansol, que exprime “a ardente natureza do sentido que interrogamos” porque uma grande viagem é como um grande amor, que permite entender, segundo Herberto Helder, “como pesa na água (…) a raiz de uma ilha”. E que é a vida senão esta compreensão?

Guilherme d’Oliveira Martins

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