A Vida dos Livros

“Textos Escolhidos” de Gonçalo Ribeiro Telles

Com organização do Arquiteto Fernando Santos Pessoa (Argumentum, 2016), é um livro que constitui uma excelente oportunidade para conhecer melhor o fascinante pensamento de uma referência viva da cultura portuguesa contemporânea.

UMA CULTURA ECOLÓGICA
Falar de uma cultura ecológica entre nós obriga a falarmos de Gonçalo Ribeiro Telles, que sempre nos ensinou que a democracia para se consolidar precisa de cuidar da memória e da cultura, como fatores de humanização – de modo que o ser prevaleça sobre o ter e que a dignidade humana seja o denominador comum da vida em sociedade. O jardim é a verdadeira metáfora da ação criadora de Deus em diálogo com o homem – por isso o confronto entre os textos e aquilo que nos tem sido legado pelo Arquiteto Paisagista é um motivo especial para compreendermos a cultura como ponto de encontro entre a compreensão da natureza e a capacidade humana de a transformar. «O homem desempenha na modelação da paisagem um papel muito importante; pode ser considerado, neste aspeto, como um autêntico criador de beleza. Toda a atividade humana tem como fim a satisfação das suas necessidades, quer espirituais, quer materiais. (…) A paisagem terá de ser considerada como um todo orgânico e biológico em que cada elemento é interdependente, influenciando e sofrendo da presença dos restantes participantes. A reciprocidade é a lei fundamental da natureza». Estas são palavras de 1956, na revista “Cidade Nova”, mas poderiam ter sido escritas hoje. Centrando-se nas pessoas e no seu sentido comunitário, GRT apela a uma natureza equilibrada, na qual a lembrança e o desejo, a memória e a criação se encontrem. A vida e a ação do cidadão corresponderam a uma grande coerência científica, política e cívica. Por exemplo, se temos o corredor verde em Lisboa e se a cidade é um símbolo, que em 2020 é devidamente reconhecido, tal deve-se, em parte significativa ao seu exemplo e à sua permanente determinação. Estamos perante um militante intransigente e persistente de uma sociedade mais humana, capaz de salvaguardar o meio ambiente, a paisagem e o ordenamento do território.

CONHECER PORTUGAL
Qual a sua grande lição? É indispensável conhecermos Portugal e o facto de não ser um país compreensível superficialmente. Não podemos esquecer a mata mediterrânica e a necessidade de uma agricultura adequada às qualidades do nosso solo. Assim, há muito que combate a ideia de uma florestação industrial extensiva com pinheiros e eucaliptos, em nome da madeira para as celuloses e para a construção civil. Lembremo-nos de alguns exemplos históricos, como o da campanha do trigo, por muitos considerada desadequada, mas posta em prática, a partir da lógica autárcica e de uma suposta autossuficiência. A floresta industrial foi outra das soluções com resultados nefastos. O professor, o pedagogo e o arquiteto paisagista tem lembrado que os romanos dividiam o território em três áreas: o ager, o campo cultivado intensamente; o saltus, ou pastagem, com agricultura menos intensiva e a silva, a mata de proteção com produção de lenha e madeira. Todo esse ordenamento foi posto em causa com sacrifício da silvicultura e a escolha contra natura da floresta industrial. Se estudarmos a nossa cultura geográfica, verificamos facilmente que não temos uma tradição florestal, mas sim mata mediterrânica e matos. Orlando Ribeiro fala do garrigue e do maquis, respetivamente: charneca de arbustos originada no bosque primitivo de azinheiras, substituído por tufos baixos de carrasco e de um cortejo de plantas aromáticas: alfazema, rosmaninho, tomilhos e cistáceas; e um sub-bosque em certos casos com povoamentos densíssimos de medronheiros. No século XIX, o pinheiro bravo veio responder às necessidades de desenvolvimento do caminho –de-ferro. Só mais tarde surgiu a utilização da resina, a indústria da celulose e a pressão da construção civil. Houve, assim, tendência para seguir orientações de curto prazo, em lugar de um pensamento estratégico. Veja-se o caso da limpeza das matas: a verdade é que no que hoje se prevê faltam condições para a circulação de água e para o aproveitamento da matéria orgânica. Daí que a prevenção dos fogos exija ações planeadas com preservação da matéria orgânica e não ações ad hoc sem consideração global. Não devemos esquecer que na mata mediterrânica, há fogos maus e bons – contribuindo estes últimos para o enriquecimento dos solos. A limpeza tem, assim, de ser considerada uma operação agrícola e ecológica – tendo de ser integrada na lógica do ordenamento do território. Do mesmo modo, GRT tem insistido no facto de o eucalipto constituir uma solução perigosa, até porque precisa de muita água – e não a temos suficiente para concorrer com o Brasil ou África. Entre Douro e Minho é a zona de maior pluviosidade, mas não pode transformar-se em floresta. Onde se considerassem os terrenos aptos à florestação, deveriam privilegiar-se as madeiras de qualidade da cultura mediterrânica, como os carvalhos, o sobreiro, a azinheira e pinheiro criteriosamente distribuídos. Com efeito, um ordenamento do território adequado necessita de equilíbrio entre o povoamento e a natureza, ou seja entre as pessoas e as culturas. Lembremo-nos do que dizia Oliveira Martins no seu célebre Projeto de Lei de Fomento Rural: “Necessitamos hoje de implantar homens a implantar árvores: dar terra a quem a fecunde. É preciso sangrá-la nuns pontos, laqueá-la noutros”…  Eis por que razão o património cultural não é uma questão do passado, mas uma realidade viva – património material e imaterial, natureza, paisagem, domínio digital e vida presente.

OPÇÃO VERDE
Para Gonçalo Ribeiro Telles, a opção verde e ecológica não é (não pode ser) uma questão de moda, mas de sobrevivência. A agricultura vai, por isso, ter de ganhar uma nova importância na economia contemporânea. O homem do futuro vai ser cada vez mais o homem das duas culturas – urbana e rural. Não esqueçamos, que já hoje 30 por cento das pessoas que se dedicam à agricultura económica na Europa não são agricultores profissionais. A expansão urbana aumenta e não podemos viver sem agricultura, sob pena de morrermos à fome e vítimas da destruição irreversível do meio ambiente, sem capacidade para combatermos o desperdício e para garantirmos o equilíbrio ecológico. Constrói-se mal, planta-se mal, esquece-se a relação entre as pessoas e a natureza. A lógica do progresso pelo progresso tem de ceder lugar à racionalidade, ao respeito pela complexidade e pelas diferenças. Não podemos continuar a pensar produzir tudo, para todos ao mesmo tempo. E o mesmo se diga para o caso do consumismo desenfreado. No velho texto de 1956, o nosso autor insiste no pensamento estratégico, baseado nas relações humanas: “Procurar solucionar problemas de ordem demográfica ou de consumo à custa da quebra do equilíbrio e da ordem acarreta prejuízos no fundo biológico da mesma, só remediáveis a longo prazo…”. O Papa Francisco na encíclica “Laudato Si’” di-lo com muita clareza. A economia mata não apenas pela especulação financeira, mas também pela cegueira relativamente ao capital social e à ecologia.

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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