COMPREENDER O SÉCULO XX
Este pequeno volume, com data do mesmo ano em que Nikias Skapinakis fez o retrato de Joel Serrão no celebrado quadro “Tertúlia”, é utilíssimo e atual. O quadro representa uma atitude centrada na liberdade e no diálogo de ideias. O livro é uma ilustração prática dessa perspetiva, reunindo um precioso conjunto de reflexões sobre a cultura portuguesa, terminando com um percurso global e multifacetado desde Sampaio Bruno a António Sérgio, com referência a Mário de Sá-Carneiro e Jaime Cortesão. Joel Serrão é um autor fundamental para a compreensão do pensamento do século XX português, a partir de uma ligação essencial entre a génese da modernidade, fruto do nosso romantismo mais perene, e a ligação ainda não cabalmente compreendida entre a geração de 1871 e o século XX do “Orpheu”, da “Seara Nova” e da presença. Dir-se-á, aliás, que a leitura triangular de Joel Serrão, José-Augusto França e Eduardo Lourenço constitui um modo de compreender a emancipação cultural do novo Portugal Contemporâneo,que chega à democracia dos nossos dias. Na revista “Bicórnio” (de J.-A. França), em 1952, Eduardo Lourenço colocava quatro perguntas sacramentais: (1) «Pode falar-se sem equívoco de “cultura portuguesa”? Ou será preferível falar antes de “cultura em Portugal”?»; (2) Num caso como noutro, é «possível discernir nessa cultura alguma permanência de intenção, ideais, valores, problemas com características próprias; (3) «Em que medida o debatido problema da “universalidade” ou “não universalidade” dessas criações culturais tem sentido?»; (4) É «possível ou conveniente impor ao conjunto das manipulações espirituais dos portugueses qualquer espécie de orientação geral apoiada sobre a existência pretendida ou real, de uma maneira de ser portuguesa, unitária e indiscutível?».
QUE CULTURA PORTUGUESA?
Para Joel Serrão “cultura portuguesa” é a cultura do povo português, vista em movimento criador, com uma história ainda por fazer, num sentido prospetivo de exigência e emancipação. No fundo, trata-se de uma “cultura condicionada, não por misteriosas e incompreensíveis virtudes ou vícios rácicos, mas pela nossa história, pela construção e mentalidade dos grupos sociais e das suas tarefas, temporalmente consideradas». Neste sentido, os elementos de permanência não são fáceis de discernir, devendo prevalecer os problemas, mais do que as respostas. Quanto ao universalismo, fica o alerta: “quando tivermos, em mais larga escala, uma literatura e uma arte com o nível a que podemos aspirar; quando tivermos ciência de facto e filosofia a sério, o problema, evidentemente, deixará de pôr-se…”. Por outro lado, “se, por hipótese, existe ‘uma maneira de ser portuguesa’, impô-la seria tirania perfeitamente dispensável”. Deveremos, pois, evitar “impor fictícias unidades a priori, arquétipos a que incriticamente devamos submeter-nos”. Esta questão constituiu, aliás, cavalo de batalha para Eduardo Lourenço na sua “psicanálise mítica do destino português”. “Não há cultura sem autonomia; ora, a autonomia implica a humana diversidade, imagem da própria vida”. Afinal, como disse Agostinho de Hipona, importaria não desejar a unidade em relação ao que facilmente pode ser separado… Urgia, deste modo, fazer um caminho de compreensão da “cultura em Portugal”, a caminho de uma “cultura portuguesa”, aberta, complexa, exigente – assente na valorização da educação e da ciência, da criatividade e da aprendizagem, do exemplo e da experiência. E a crítica de Joel Serrão ao empolamento de uma “filosofia portuguesa” centra-se nesta preocupação: o fechamento, qualquer que seja, é sempre empobrecedor. Não estaria em causa a qualidade lírica de Pascoaes ou a capacidade intelectual de José Marinho, mas sim uma absolutização do que é próprio e nacional – que deve ser considerado à luz da dualidade cultura em Portugal / cultura portuguesa. Se é facto que se pode sempre seguir o que é positivo e criador numa cultura, não podemos esquecer a qualidade e a exigência, que pressupõe a educação, e em especial uma reforma do ensino da filosofia. Caberia, assim, garantir a autonomia desse ensino, o diálogo além-fronteiras e a ligação ao progresso científico: “Onde não haja ciência, não há nem pode haver filosofia. Onde não haja filosofia não há nem pode haver ciência que mereça tal nome”.
NEM COMPLEXOS NEM ILUSÕES
“Diante da filosofia estrangeira, nem complexos de inferioridade nem megalomanias me parecem adequados a resolver o problema do baixo nível da nossa especulação. Teremos filosofia a valer quando, libertos de tais perturbações, tenhamos alcançado, pelos nossos meios, o nível que nos permita o diálogo autónomo. Diálogo autónomo relativamente a problemas comuns. E todos os caminhos serão bons – e só serão bons -, quando o fim seja o universal, que, a partir de Sócrates, é timbre do homem que se interroga e busca saber, mediante a inteligencia, e em termos de ciência”… Na linha de pensamento de António Sérgio, Joel Serrão põe a tónica na orientação pedagogista. Importaria, deste modo, não só a audácia da reflexão, mas também o permanente sentido crítico. Afinal, há sempre um diálogo no tempo histórico, entre o que recebemos das gerações que nos antecederam e o que transmitimos ao devir. Assim, Sérgio assumia a causa de um patriotismo prospetivo, capaz de valorizar o que é próprio, sem a tentação do autocomprazimento, e com recusa da tentação de uma fantasiosa glorificação retrospetiva. “Se mais não houvesse a relevar na obra de Sérgio, – e há – , como contribuição talvez essencial para a historiografia do nosso tempo, bastaria a propedêutica do saber histórico, que ou é problemático, ou não é coisa alguma, em que tanto tem insistido, para que todos lhe estivéssemos reconhecidos, e para que não seja difícil fazer uma previsão: esse será o aspeto da sua atividade mental que o futuro se encarregará de valorizar mais e mais”. Afinal, também Jaime Cortesão afirmou emblematicante: “Toda a história escrita tende a tornar-se uma interpretação atual do passado. Por isso se tem dito que cada geração escreve, à sua maneira, a história. Assim é, e assim deve ser”. E não por acaso, na nota inicial, o autor cita o belo poema de Jorge de Sena: “Uma pequenina luz bruxuleante e muda / Como a exatidão como a firmeza / Como a justiça. /Apenas como elas. / Mas brilha. / Não na distância. Aqui / No meio de nós. / Brilha”…
Guilherme d’Oliveira Martins