O VALOR INCOMENSURÁVEL DA CULTURA
O tema deu pano para mangas, e permitiu glosas diversas para o mesmo mote. Naturalmente, que havia que lembrar a primeira lição de economia, que muita gente esquece. De facto, o que tem mais valor é o que não tem preço. Isto significa que se queremos compreender as relações humanas e sociais, somos obrigados a entender a dificuldade das escolhas que somos obrigados a fazer. O mercantilismo cego tem levado a cairmos nas armadilhas do imediatismo e do curto prazo. Por isso, Sophia dizia, como se estivesse a ver o que a cada passo nos circunda, que a demagogia custa sempre caríssimo. Se é verdade que nem tudo o que reluz é ouro, o certo é que a corrida atrás do que é fácil e imediato só leva a exacerbar egoísmos e consumismos, numa corrida desenfreada para a destruição do que melhor recebemos por parte das gerações que nos antecederam. E regresso ao velho tema da exigência de não deixar ao abandono o património cultural em todas as suas vertentes.
DO QUE FALAMOS?
De que cultura falamos? Da arte, onde tudo começa, já que a educação da criança se inicia pelos sentidos e pela admiração, curiosidade e espanto por tudo o que é belo, seguindo a maravilha dos números, que nos permitem unir e distinguir, e continuando na magia das letras e das palavras. Voltando à poeta de “Mar Novo”: “A Arte deve ser livre, porque o ato de criação é em si um ato de liberdade. Mas não é só a liberdade individual do artista que importa. Sabemos que quando a Arte não é livre, o povo também não é livre. Há sempre uma profunda e estrutural unidade da liberdade. Onde o artista começa a não ser livre o povo começa a ser colonizado e a justiça torna-se parcial, unidimensional e abstrata. Se o ataque à liberdade me preocupa tanto é porque a falta de liberdade cultural é um sintoma que significa sempre opressão de um povo inteiro”. Eis o que está em causa. A liberdade corresponde a uma dimensão pessoal e comunitária. Lembro-me bem de Sophia a invocar estas duas palavras, do mesmo modo que Francisco de Sousa Tavares demarcando-se dos entendimentos totalitários que partiam da lógica transpersonalista. Em tantos debates no Centro Nacional de Cultura essa questão tornou-se pedra de toque. Liberdade e diferença, igualdade e responsabilidade – eis o que obrigava a partirmos para uma democracia de pessoas, como nos ensinaram na sala histórica da António Maria Cardoso: Gabriel Marcel, José Bergamín, Schillebeeckx, Padre Manuel Antunes, Maria de Lourdes Belchior, Almada Negreiros, Fernando Amado, Gonçalo Ribeiro Telles… Todos por lá passaram, militantemente. E a liberdade era defendida na encruzilhada da raiz e da utopia – ou como queria Bergamin, na capa da sua revista “Cruz y Raya” como mais e menos. Só poderemos ser livres, se a justiça não for parcial, unidimensional e abstrata. Daí esses dois sinais gráficos da adição e da subtração. Que é a cultura senão essa capacidade de distinguir o que acrescenta e o que diminui. A vida é isso mesmo. E a criação cultural corresponde à aproximação das pessoas concretas – numa relação que tem de ser estabelecida olhos nos olhos… Os criadores são pessoas de carne e osso que partilham a sua capacidade de fazer da arte um valor para todos. Como ainda dizia Sophia: “Existe uma arte para todos à qual o povo deve ter acesso porque esse acesso lhe deve ser possibilitado através dos meios de comunicação social”. Os aedos cantaram nos palácios, os rapsodos nas praças públicas, e com Homero, a arte foi posta em comum – e por isso os gregos inventaram a democracia. E que é a Arte? Um dom pelo qual acrescentamos valor ao que a natureza nos faculta. Como diz Eduardo Lourenço, “o sentido real da cultura é a produção de coisas valiosas e de valores”. Quando pomos em diálogo os poetas, os escritores, os pintores, os escultores, os músicos, os artesãos, os atores, os dramaturgos, os cientistas – é o mundo e a natureza que pomos a falar.
A QUE PREÇO?
A cultura é cara? Sim, porque corresponde ao que tem mais valor. Àquilo que não cabe nos cânones do mercado. E falamos de uma noção ampla e rica, a cultura que não pode ser deixada ao abandono. Não é mercadoria, do mesmo modo que a educação e a ciência o não são. Por isso, estamos perante um investimento reprodutivo, transversal e abrangente. Os públicos da cultura formam-se nas escolas. A criatividade do artista e do cientista, do músico ou do artesão têm raízes comuns. Falamos das identidades como realidades dinâmicas, diversas e abertas. Falamos de fundamentos e raízes que temos de enriquecer permanentemente. Falamos de pessoas, de hábitos e costumes, de pedras vivas, mas também de monumentos, de vestígios arqueológicos, de pedras mortas, que têm significado para o nosso ser. E falamos do património genético e do digital, do genoma e da inteligência artificial, bem como da natureza e da paisagem, e igualmente da capacidade criadora de hoje e de sempre. É este o sentido comunitário que foi bandeira cívica de Sophia e de Gonçalo Ribeiro Telles, num combate sem tréguas contra a ilusão e a indiferença. Que são Humanidades? Nunca domínios fechados, mas diálogo vivo de saberes. Lembramo-nos do trivium e do quadrivium medievais. Lá está tudo o que importa, e sobretudo os horizontes abertos: a Gramática, a Lógica e a Retórica, e ainda a Aritmética, a Geometria, a Astronomia e a Música. E como não lembrar a fantástica figura de Leibniz? Não há melhor cultor das Humanidades. Foi filósofo, matemático, escritor, historiador, cientista, figura máxima de todas as artes liberais. Eis por que razão ao falar de cultura, não falamos de uma tribo fechada sobre si. Falamos de educação, de ciência, de comunicação, de artes. E ao falar de educação, referimos o fator essencial de desenvolvimento humano – que é a aprendizagem. Luísa Dacosta insistia na ideia de que a educação é sempre uma troca, desde tenra idade… E esta leva-nos ao exemplo e à experiência. Cultivar a pergunta e a capacidade de ver o que nos rodeia e saber responder – eis o essencial. O espírito científico significa cultivar a atenção, e saber ligar os saberes; ter a humildade suficiente para reconhecer que o valor do conhecimento obriga a saber acrescentar. E só compreendemos se soubermos comunicar, distinguindo o trigo do joio. Tornar a informação conhecimento e o conhecimento sabedoria. E assim temos de nos prevenir contra o erro, a manipulação e as notícias falsas, já que o sentido crítico, sendo indispensável, corresponde a entender os limites. A cultura como dom leva-nos a perceber que só vamos mais além se vencermos passo a passo. E a incultura representa um enorme desperdício.
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença