POETA MÍSTICO
Foi Eduardo Prado Coelho quem me chamou a atenção para a importância da poesia de Daniel Faria (1971-1999) e foi então que li, em 2002, os três primeiros livros, editados pela Fundação Manuel Leão, graças ao apoio do então Padre Carlos Moreira Azevedo, segundo o corpus definido pelo próprio poeta desaparecido: Explicação das Árvores e de outros Animais; Homens que são como Lugares mal situados e Dos Líquidos. É certo que este último volume foi publicado a título póstumo, mas foi deixado globalmente acabado, como obra de fecho desse conjunto. Ou seja, pouco depois da sua morte prematura e inesperada, pudémos dispor de uma prova concludente relativa ao valor do poeta e à importância da sua promessa. «Não sabemos como tencionaria Daniel Faria prosseguir o “Sétimo Dia” ou sequer se teria encarado em algum momento a hipótese de concluí-lo; interrogamo-nos, caso tivesse continuado, que lugar ocuparia cada homem nos dois dias em falta», escreveu Francisco Saraiva Fino no texto que abre o volume. Apenas sabemos da boca do próprio poeta que ele tinha a intenção de reconhecer Cristo como “lugar mal situado”, devendo ser compreendido pela humanidade, até pela dificuldade em encontrar um lugar onde “reclinar a cabeça”. No fundo, tratar-se-ia de fazer da arte poética uma procura do lugar de encontro entre a imanência e a transcendência. «Em “Sétimo dia”, cinco homens repartem perspetivas sobre a ideia de ocupação e coincidem no desejo de alcançar uma certa ideia de existência transcendente sem depor a medida humana». E cada voz é o anunciar de um degrau no caminho do reencontro com a palavra poética na expressão tendo em consideração a “fé inabalável no mistério que inclina / Os homens para dentro” e na representação das depurações da semente na difícil ascensão para a vida do espírito.» Deste modo, o poeta caminha na busca de um lugar, não como certeza fechada, mas como: “Homens que são como casas saqueadas / Que são como sítios fora dos mapas / Como pedras fora do chão / Como crianças órfãs / Como homens sem fuso horário / Homens agitados sem bússola onde repousem (…) / Porque a sua força é para fora e a sua espera / É a fé inabalável no mistério que inclina / Os homens para dentro / Não os levantemos / Nem nos sentemos ao lado deles. Sentemo-nos / No lado oposto, onde eles podem vir para erguer-nos / A qualquer instante». Com efeito, há algo por desvendar, nesse texto incompleto agora divulgado. Apenas podemos reler o que o poeta nos deixou. Se, de facto, há um mistério que se manterá eternamente, podemos sentir a inquietação manifestada… «Agora, quando telefonar de novo (diz Daniel Faria), vou deixar no atendedor de chamadas uma passagem bíblica. Há aqui uma de que gosto por demais: “Ao descer da montanha, seguiam-no multidões numerosas, quando um leproso de repente se aproximou e se prostrou diante dele dizendo: ‘Senhor, se queres, tens poder para purificar-me’. Ele estendeu a mão e, tocando-o, disse: ‘Eu quero, sê purificado’ E imediatamente ele ficou curado.” E Jesus disse, “Eu quero”… Eu nunca ouvi nada com mais luz. Eu nem consigo imaginar, sem que me aumente a febre, esse homem a correr por entre a multidão, esse homem a dizer se queres e Jesus a dizer eu quero… Eu quero… eu quero… eu nunca tinha dito nada assim.»
UM PERCURSO MUITO FUGAZ
Daniel Faria nasceu em Baltar, Paredes, a 10 de abril de 1971. Frequentou no Porto o curso de Teologia na Universidade Católica Portuguesa – onde se licenciou em 1996. No Seminário e na Faculdade de Teologia demonstrou uma forte inclinação poética, estabelecendo um diálogo com a criação contemporânea. Também se diplomou em Estudos Portugueses na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Simultaneamente com a sua fecunda criação artística, a opção monástica torna-se evidente. A partir de 1990, colabora com a paróquia de Santa Marinha de Fornos, Marco de Canaveses, onde demonstra uma capacidade excecional para a animação cultural e um grande potencial de sensibilidade para o teatro, encenando, com recursos limitados, As Artimanhas de Scapin de Molière e o Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente. Faleceu tragicamente a 9 de junho de 1999, quando estava prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga, em resultado de uma queda. Como lembra Alexandra Lucas Coelho, num texto fundamental, que corresponde a um retrato fiel de Daniel Faria: «Sophia de Mello Breyner Andresen foi, para ele, o princípio da poesia. E quando chegou a vez de Sophia o ler, disse: “Versos que põem o mistério a ressoar em redor de nós.” Essa é a síntese, tudo o que importa. É da poesia que partimos, mesmo quando vamos de casa em casa, à volta da vida. Para saber um pouco mais, para voltar a não saber. Vale só por isto, a aproximação a uma biografia.
UM ROSTO QUE HÁ DE VIR
Quando lhe pediram um autorretrato, Daniel Faria escreveu que era “um rosto que há de vir”. E assim será, para o leitor dos poemas. Acreditamos que na poesia portuguesa dos últimos 20 anos poucos tenham vindo à luz assim, com um impacto de pedra». Nesse testemunho recolhido no jornal Público. Um colega recorda: “O Daniel tinha sempre projetos fantásticos, queria ler as obras completas de Shakespeare… O Rilke, na tradução do Paulo Quintela, era fundamental para ele, como o Herberto. E depois Luiza Neto Jorge, Eugénio, Ramos Rosa, Sophia, Ruy Belo, Lorca. Foi com ele que conhecemos Drummond, Guimarães Rosa…” O poeta empenhou-se na ida de Eugénio de Andrade ao seminário. Foi um risco, mas o resultado foi muito bom: Daniel Faria “ficou exausto, havia oposições dentro do seminário, isso angustiou-o imenso. Depois correu muito bem, o Eugénio só não entrou na capela, lembro-me que se admirou por jogarmos futebol sem batina…” E Eugénio de Andrade resumiu essa inédita aventura como “uma tarde divertidíssima”. (cf. Público, 14.6.2001). A memória de Daniel Faria foi-se consolidando com o andar do tempo. Mas o seu prematuro desaparecimento teve dois efeitos contraditórios: por um lado, atrasou o reconhecimento da importância da sua obra; e, por outro, permitiu que, finalmente, possamos encontrar a sua voz, como uma das mais significativas da contemporaneidade.
Guilherme d’Oliveira Martins